A Lagoa da Pampulha e a esquistossomose

 No ano de 1936 o então prefeito de Belo Horizonte, Octacílio Negrão de Lima, iniciou a construção de uma barragem na cidade, com o represamento do ribeirão Pampulha. O principal objetivo era garantir o abastecimento de água da capital (tendo em vista o crescimento da urbe), e controlar as cheias dos tributários. Já nesse período o relatório da municipalidade informava que, “Em torno do lago, constrói-se uma avenida com a extensão de 14 quilômetros. A acumulação prestar-se-á à prática de esportes náuticos”.[1] Mas esse projeto não foi desenvolvido de uma só vez, tendo sido ampliado pela administração seguinte, comandada pelo prefeito Juscelino Kubitschek. O político tinha a intenção de transformar a região do entorno da lagoa em um bairro residencial para a classe média/alta, com obras de embelezamento e ajardinamento, além de equipamentos arquitetônicos que fomentassem o turismo, “Compreendemos ser a ocasião propícia para dar à cidade uma série de atrações […] para o desenvolvimento do intercâmbio turístico, uma das mais rendosas indústrias com que podem contar as cidades”. Por outro lado, também existia o desejo de estimular o crescimento residencial na área, com o intuito de criar “novas fontes de tributação” para o município.[2]

De acordo com informe oficial do ano de 1941, a Lagoa da Pampulha ocupava 220 hectares de área inundada, com volume de 311.491,000 m³.[3] Ao redor da lâmina de água ergueram um Cassino, o Iate Golfe Clube, a Casa do Baile e a Igreja de São Francisco de Assis, conjunto que no ano de 1943 já estava finalizado, com projeto do arquiteto modernista Oscar Niemeyer. Tratava-se, portanto, de um investimento público de grande vulto, destinado a impactar a vida de milhares de pessoas e movimentar a economia local. Além dos moradores do entorno, a região logo começou a atrair turistas, principalmente nos fins de semana, para nadar e praticar esportes náuticos, então permitidos. Porém, com o grande afluxo de visitantes, ocorreu o aumento de casos de esquistossomose mansoni na cidade de Belo Horizonte.

O fato é que, antes mesmo da construção do conjunto arquitetônico, quando apenas a barragem foi inaugurada, em 1938, surgiram sinais de alerta para a quantidade expressiva de caramujos, hospedeiros do parasita. O primeiro estudo a detectar o problema foi publicado por Amilcar Vianna Martins e Waldemar Versiani dos Anjos, já no de 1939. As autoridades foram avisadas do problema e determinaram o esvaziamento temporário da barragem, momento em que os pesquisadores, ao buscarem por caramujos, informaram que “foram eles encontrados e colhidos aos milhares”, com cálculo superficial de que existiam “12 ou 15 milhões aproximadamente”.[4] A esquistossomose, popularmente conhecida, naquela época, como “barriga d’água”, é causada pelo parasita Schistosoma mansoni, que tem nos caramujos seu hospedeiro intermediário. A transmissão se dá pela liberação dos ovos contidos nas fezes, e que ao entrarem em contato com a água, eclodem, liberando larvas que necessitam do caramujo para completar seu ciclo evolutivo, finalizado com a contaminação humana pela pele. Trata-se, portanto, de uma doença favorecida por más condições de higiene e de saneamento básico, atingindo, normalmente, populações pobres. Contudo, no caso da Lagoa da Pampulha, os doentes pertenciam a todas as classes sociais, dado que era ponto frequentado por turistas e moradores abastados da região. Várias medidas foram tomadas à época, como a construção de fossas na área (para evitar a contaminação da água), a soltura de aves aquáticas para a predação dos caramujos e o tratamento da barragem com sulfato de cobre.

Essas medidas ajudaram na diminuição dos casos, em combinação com o alerta passado à população para evitar contato com as águas da lagoa. Porém, no ano de 1954 ocorreu o rompimento da barragem, em razão de uma fenda no concreto armado que tardou a ser detectada, levando à evacuação de moradores e até mesmo à paralisação das atividades do aeroporto da Pampulha. O escoamento emergencial de parte do volume da água evitou uma tragédia, mas não impediu a inundação. A lagoa, então, foi totalmente esvaziada para o estudo do problema e a sua posterior recuperação, que só ocorreu em 1958. Antes do projeto ficar pronto, Amilcar Vianna Martins, então chefe do Instituto Nacional de Endemias Rurais, coordenou uma reunião, no ano de 1957, antecipando o potencial problema da lagoa ser reinfestada por caramujos. Dentre outras medidas, e como parte do plano de ação, coube ao então Centro de Pesquisas de Belo Horizonte (atual Instituto René Rachou), reforçar um projeto de pesquisa que já ocorria no local desde 1956, com o intuito de “verificar as modificações ecológicas que fatalmente iriam se processar naquela área”, e que objetivavam: “(a) verificação de ocorrência de caramujos, (b), determinação dos seus índices de infecção, (c) análise fitossociológica […], (d) análise físico-química da água”.[5]

O pesquisador do Centro, Roberto Milward de Andrade, do Laboratório de Ecologia, liderou o trabalho, tendo acompanhado a situação da lagoa ao longo dos anos. Ele constatou que a barragem teria sido remodelada de tal forma que, inadvertidamente, tornou-se ambiente propício à proliferação do caramujo, pois a vazão da água, 1 metro inferior à da lagoa original, fez das margens ambiente favorável à incidência do hospedeiro, além de ampliar as áreas de brejo. Para diminuir os riscos de infecção, o pesquisador recomendou a elevação do nível da água e o aterramento dos brejos; além da necessidade óbvia de maiores investimentos em saneamento básico.

Imagem da Igreja da Pampulha ao fundo, com a área dianteira coberta de vegetação, para onde retornaria o espelho d’água. In: ANDRADE, Roberto Milward De. O problema da esquistossomose mansoni no lago artificial da Pampulha, Belo Horizonte, Minas Gerais (Brasil). Revista Brasileira de Malariologia e Doenças Tropicais, vol. XI, n. 4, out. 1959, p. 658. Acervo da Biblioteca do Instituto René Rachou.

 As investigações de Roberto Milward de Andrade, na Lagoa da Pampulha, continuaram. No ano de 1969 ele publicou novo artigo sobre o tema, já assinando o texto como membro do Centro de Pesquisas René Rachou.[6] O cientista efetuou várias fotografias para a composição do estudo, onde ele descreveu, nas legendas, o estado da lagoa, a presença de populares e o seu trabalho de campo.

Corregos

Fotografias de autoria de Roberto Milward de Andrade, em pesquisa de campo na Lagoa da Pampulha, 1966. In: Biologia aplicada. Nota ecológica sobre o lago da Pampulha (Belo Horizonte, Minas Gerais), com especial referência aos planorbídeos (pulmonata, planorbidae). Revista Brasileira de Malariologia e Doenças Tropicais, vol. XXI, n. 1, jan.-mar. 1969, s./p.. Acervo da Biblioteca do Instituto René Rachou.

 No início da década de 1970 a contaminação da lagoa pela esquistossomose ainda era considerada “perigosa”, segundo o pesquisador Naftale Katz, que efetuou trabalho investigativo a pedido da Prefeitura de Belo Horizonte.[7] Os esforços dos cientistas continuaram na busca por soluções preventivas e pelo tratamento da doença. No ano de 1980 o Jornal do Brasil noticiou que, “O professor e diretor do Laboratório de Ecologia do Centro de Pesquisas René Rachou, Roberto Milward de Andrade, anunciou que desenvolveu um método para impedir a multiplicação dos caramujos da esquistossomose que consiste na aplicação de adubo termofosfato magnesiano nas lagoas e habitats naturais do hospedeiro da doença”.[8] Em 1985, Omar dos Santos Carvalho e outros colaboradores do Instituto René Rachou alertavam para o risco de retorno expressivo da doença, em razão de “profundas alterações ecológicas, em virtude da interferência humana, sem os necessários estudos prévios, ou mesmo avaliação das possíveis consequências futuras”. Um exemplo de obra realizada sem levar em conta os impactos no ecossistema foi o início da construção de uma ilha, na junção com a enseada do córrego da Ressaca, em 1979, que ficou inacabada, agravando o processo de assoreamento.[9]

O fato é que a luta histórica contra a esquistossomose resultou na expressiva diminuição dos casos no estado de Minas Gerais[10] e, consequentemente, na Lagoa da Pampulha. Porém, o local é constantemente monitorado para evitar o retorno da doença e a disseminação de outras patologias.  Desde os primeiros estudos sobre a incidência da esquistossomose na barragem, realizados por Amilcar Viana Martins e Waldemar Versiani, em 1939, até os dias de hoje (2019) –, temos exatos 80 anos de esforços investigativos. O caso da Lagoa da Pampulha é emblemático, pois evidencia como, em ciência, os bons resultados advêm, muitas vezes, de estudos a longo prazo, envolvendo gerações de pesquisadores.

Projeto Memória. Trajetória histórica e científica do Instituto René Rachou – Fiocruz Minas.

Coordenadores: Dr.ª Zélia Maria Profeta da Luz; Dr. Roberto Sena Rocha.

Historiadora: Dr.ª Natascha Stefania Carvalho De Ostos.

Texto de: Natascha Stefania Carvalho De Ostos

 

[1] PREFEITURA de Belo Horizonte. Barragem da Pampulha. In: Relatório apresentado pelo prefeito Octacílio Negrão de Lima ao Governador Benedicto Valladares Ribeiro em 1935-1936. Belo Horizonte: Imprensa Official do Estado, 1937, p. 54.

[2] PREFEITURA de Belo Horizonte. Relatório apresentado pelo prefeito Juscelino Kubitschek Oliveira ao Governador Benedicto Valladares Ribeiro, 1941, p. 23, p. 38.

[3] Idem, p. 39.

[4] MARTINS, Amílcar Vianna; VERSIANI, W.. Plano de combate a “Schistosomose mansoni” em Belo Horizonte. Hospital, Rio de Janeiro, 15(3), p. 197-206, 1939.

[5] ANDRADE, Roberto Milward De. O problema da esquistossomose mansoni no lago artificial da Pampulha, Belo Horizonte, Minas Gerais (Brasil). Revista Brasileira de Malariologia e Doenças Tropicais, vol. XI, n. 4, out. 1959, p. 667.

[6] In: Biologia aplicada. Nota ecológica sobre o lago da Pampulha (Belo Horizonte, Minas Gerais), com especial referência aos planorbídeos (pulmonata, planorbidae). Revista Brasileira de Malariologia e Doenças Tropicais, vol. XXI, n. 1, jan.-mar. 1969, p. 59-116.

[7] Caramujo nas águas do lago. Diário da Tarde, Curitiba, n. 21.608, 06 jan. 1972, p. 1.

[8] Professor tem método contra a esquistossomose. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23 ago. 1980, p. 9.

[9] CARVALHO, Omar dos Santos et al. Situação atual da esquistossomose mansoni no Lago da Pampulha, Belo Horizonte, MG, Brasil. Rev. Saúde Pública,  v. 19, n. 3, p. 270-277,  jun.  1985.

[10] KATZ, Naftale. Inquérito Nacional de Prevalência da Esquistossomose mansoni e Geo-helmintoses. Belo Horizonte: CPqRR, 2018, p. 24.