Amilcar Vianna Martins

Amilcar Vianna Martins.  Fotografia: Fiocruz

Em agosto de 1907 inaugurou-se, em Belo Horizonte, a filial mineira de Manguinhos, destinada a realizar pesquisas e ações na área da saúde. No mês seguinte nasceu, na mesma cidade, Amilcar Vianna Martins. Esses eventos temporais se alinharam, marcando o início de duas trajetórias, uma institucional, outra pessoal, que se entrecruzaram ao longo de quase todo o século XX.

Enquanto a filial estabelecia suas bases em Minas Gerais, Amilcar Martins passava a infância colecionando insetos e firmando seu gosto pela zoologia. O interesse precoce pelas ciências naturais determinou o ingresso, em 1924, no curso de medicina da Faculdade de Medicina de Minas Gerais.[1] Ainda na graduação ele foi contratado para trabalhar como auxiliar acadêmico na filial mineira de Manguinhos – Instituto Ezequiel Dias. O jovem Amilcar possuía uma mente aberta e curiosa, voltada para a solução de problemas do mundo concreto. Quando estudante foi candidato à presidência do Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina, e seu pragmatismo já despontava, “A nossa época, a meu ver, não mais se compadece com um idealismo utópico. Necessitamos encarar as questões por um prisma mais positivo, correspondentes às necessidades que temos e aos elementos com o que contamos”.[2] Formando em 1929, o médico foi incorporado como profissional no Instituto Ezequiel Dias, atuando nas áreas de microbiologia, zoologia e parasitologia.[3] Em 1930 começou a trabalhar como professor de Fisiologia na Faculdade de Medicina, ingressando de modo definitivo na instituição por meio de concurso, em 1939, na cadeira de parasitologia.[4]

Enquanto Amilcar consolidava sua carreira, o Instituto Ezequiel Dias também passava por transformações. No ano de 1936 a instituição foi estadualizada. Disputas políticas causaram problemas administrativos e interferiram na condução das pesquisas, o que provocou descontentamento em Amilcar Martins. Em razão dos problemas no ambiente de trabalho, mas principalmente pelo seu repúdio ao fascismo, o médico alistou-se na Força Expedicionária Brasileira em 1943, atuando na Itália como integrante do corpo médico. Mas antes de partir para a Europa, ele agiu decisivamente para a criação do Centro de Estudos e Profilaxia da Moléstia de Chagas, em Bambuí (MG), pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC), destinado a promover pesquisas e controle da patologia na região. Mais uma vez Amilcar ligou seu nome à história de Manguinhos, pois o local, hoje denominado Posto Avançado de Pesquisas Emmanuel Dias, e integrado à Fiocruz Minas, é um marco nos estudos sobre a patologia.

De volta ao Brasil, o médico continuou a atuar como docente na Universidade Federal de Minas Gerais. No início da década de 1950 ele coordenou pesquisa que visava conhecer a situação da esquistossomose no estado. Os primeiros resultados publicados chamaram a atenção do sanitarista Barca Pellon, especialista do Ministério da Saúde, que convidou Amilcar a estender a pesquisa para todo o Brasil, assumindo a chefia de um centro de estudos em Pernambuco. Porém, como a vida profissional e familiar do médico estava baseada em Belo Horizonte, ele declinou a oferta, mas informou que estaria disposto a dirigir um centro de pesquisas caso ele fosse localizado na capital mineira.[5] Ficou acordado que, se Amilcar Martin conseguisse o terreno, o governo federal faria a dotação de verba para arcar com os demais custos. Os bons contatos que Amilcar mantinha com segmentos políticos e administrativos mineiros garantiram que a Prefeitura de Belo Horizonte, na gestão do prefeito Octacílio Negrão de Lima, doasse um terreno para a União, destinado à construção de um “Centro de Estudos de Esquistossomose e um Centro de Tratamento Rápido de Doenças Venéreas”.[6] Porém, quando o prédio ficou pronto, decisão administrativa alterou sua destinação, transformando-o, em 1955, na nova sede do Instituto de Malariologia, que antes funcionava na cidade do Rio de Janeiro. Com a criação, em 1956, do Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERu), Amilcar Martins foi nomeado chefe do Instituto Nacional de Endemias Rurais (INERu), órgão do DNERu destinado a realizar pesquisas. O Instituto de Malariologia passou a chamar-se Centro de Pesquisas de Belo Horizonte (CPBH), subordinado ao INERu. Assim, Amilcar, mesmo não sendo o diretor do CPBH, determinava as políticas administrativas e influenciava as diretrizes científicas da Instituição, até 1958. Nesse ano, Amilcar ligou-se novamente a Manguinhos, assumindo o cargo de diretor do IOC, em uma fase difícil da Instituição, que enfrentava a necessidade de renovação dos quadros de pesquisadores. O médico procurou incentivar a produção de pesquisas e direcionar recursos para o incremento da produção de vacinas, principalmente da febre amarela.[7]

Em 1960, Amilcar Martins foi nomeado diretor do DNERu, permanecendo poucos meses no cargo, até 1961, quando retornou à vida universitária. Na UFMG foi um dos principais responsáveis pela criação do Instituto de Ciências Biológicas, em 1968, sendo o seu primeiro diretor, além de chefe do Departamento de Parasitologia. O cientista, cujas opiniões políticas eram ligadas à esquerda, enfrentou perseguição da ditadura militar e sofreu aposentadoria compulsória em 1969. A partir de então passou uma temporada no exterior, na Europa e na América Latina, trabalhando a convite da Organização Mundial da Saúde e da Organização Pan-Americana da Saúde.[8]

Retornando ao Brasil, Amilcar estabeleceu forte atuação no CPBH, que em 1966 passou a chamar-se Centro de Pesquisas René Rachou. O local contava com diversos pesquisadores que ali chegaram por intermédio de Martins. Mesmo sem vínculo formal com o Centro, o cientista manteve laços com a Instituição, que em 1970 foi incorporada à Fiocruz, e é hoje o Instituto René Rachou (IRR), ou Fiocruz Minas. Assim, Amilcar, que iniciou sua carreira na filial mineira de Manguinhos, na década de 1920, que atuou na criação da estrutura física, administrativa e científica do hoje IRR, é uma das suas maiores referências históricas. No IRR ele realizou, juntamente com Alda Falcão, estudos sobre flebotomíneos, dando origem à atual Coleção de Flebotomíneos (COLFLEB) da Fiocruz Minas, uma das mais relevantes do mundo.[9] Além desse trabalho, ao longo de sua passagem por diversas instituições, o cientista também se destacou pela produção de pesquisas na área da esquistossomose, sobre “diagnóstico, tratamento e também caramujos, hospedeiros silvestres e distribuição geográfica”. No campo da Doença de Chagas contribuiu com investigações sobre “vetores e fases clínicas”,[10] e ainda atuou no estudo da leishmaniose, e sua distribuição geográfica em Minas Gerais.

Amilcar Martins foi uma das pessoas mais influentes da ciência brasileira. Ele ajudou a solidificar, pelas suas iniciativas administrativas aglutinadoras, importantes instituições científicas nacionais. Apoiou, com orientação e oportunidade de trabalho, jovens pesquisadores que se tornariam grandes cientistas, como José Pellegrino e Zigman Brener. Sua trajetória de destaque rendeu-lhe diversas honrarias, como o Prêmio Costa Lima, da Academia Brasileira de Ciências, medalha Carlos Chagas e medalha Pirajá da Silva. Ele foi professor catedrático e emérito da UFMG. O prédio do ICB-UFMG leva seu nome, bem como uma rua do campus universitário.[11] Em Belo Horizonte, um parque municipal foi batizado em sua homenagem. A cidade também abriga o Instituto Cultural Amilcar Martins, voltado para o estudo da história e da cultura de Minas Gerais.

Falecido em 1990, Amilcar Vianna Martins é considerado o patrono do IRR, que em 1994 atribuiu o nome do pesquisador a seu prédio anexo. O cientista se confunde, assim, com o cimento e a argamassa que sustentam a estrutura física, e a história científica, da Fiocruz Minas.

 

 

Projeto Memória. Trajetória histórica e científica do Instituto René Rachou – Fiocruz Minas.

Coordenadores: Dr.ª Zélia Maria Profeta da Luz; Dr. Roberto Sena Rocha.

Historiadora: Dr.ª Natascha Stefania Carvalho De Ostos.

 

Texto de: Natascha Stefania Carvalho De Ostos – Doutora em História

 

 

[1] AZEVEDO, Nara; KROPF, Simone. Ciência, saúde e vida pública. In: KLEIN, Lisabel (org.). Professor Amilcar Vianna Martins: ciência para a saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007, p. 9.

[2] Uma palestra com Amilcar Martins, candidato à presidência do Centro Acadêmico da F. de Medicina. Semana Illustrada, Belo Horizonte, n. 46, 21 abr. 1928, s./p..

[3] MARTINS, Amilcar Vianna. Entrevista concedida a Nara Azevedo e Jaime Benchimol. Edição Wanda Hamilton. Fiocruz, Casa de Oswaldo Cruz, Belo Horizonte, 1988. In: KLEIN, Lisabel (org.). Professor Amilcar Vianna Martins. Ibidem, p. 19.

[4] AZEVEDO, Nara; KROPF, Simone. Ibidem, p. 11.

[5] MARTINS, Amilcar Vianna. A História do Centro de Pesquisas “René Rachou”. Depoimento Pessoal. In: FIOCRUZ. Centro de Pesquisas René Rachou. Comemoração dos 24 anos de existência. Belo Horizonte, 1980, p. 8.

[6] Idem.

[7] MARTINS, Amilcar Vianna. Entrevista concedida a Nara Azevedo e Jaime Benchimol. Ibidem, p. 40.

[8] Idem, p. 44.

[9] BRENER, Zigman. Prof. Amilcar Vianna Martins (In Memoriam). Mem. Inst. Oswaldo Cruz,  vol. 85, n. 2, jun. 1990, p. I.

[10] KATZ, Naftale. As contribuições científicas de Amilcar Martins, pesquisador e sanitarista. In: KLEIN, Lisabel (org.). Professor Amilcar Vianna Martins. Ibidem, p. 46.

[11] UFMG. Ruas do Campus. Disponível em: < https://www.ufmg.br/80anos/campus.html>.