“Causos” da ciência. Foi assim que tudo aconteceu…

roberta

“Em 31 de dezembro de 2006, numa cidade do Espírito Santo/ES, época de festas e de muitas chuvas no sudeste brasileiro. Uma delas aconteceu na casa do tio “Zé Mané”, onde estavam todos reunidos. Lá pelas tantas, o sobrinho do Zé fez a ele um desafio muito “inteligente”…

– “Tio, quero ver se você é um homem ou um rato? Se é homem mesmo quero que coma esta lesma aqui…”

O sobrinho pegou uma lesma na mão para sustentar o desafio, foi quando outro sobrinho do Zé, o “Sabichão”, veio ao encontro do tio e disse:

– “vamo mostrar para esse caipira que nois é ome…”

Daí ele dividiu a lesma ao meio e deu uma metade para o tio e a outra ficou com ele. Os dois comeram suas metades, um mastigou bem e engoliu e o outro engoliu sem mastigar… (parecia um desenho experimental). Após essa prova inquestionável de hombridade a festa continuou até tarde. No outro dia, os dois acordaram cedo com muito calor e uma leve coceira pelo corpo. Então resolveram retomar a festa, afinal sobrara muita cerveja e carne e o “calor” estava insuportável, aliás, calor que só os dois estavam sentindo. Voltaram então a beber, mas já não estavam se sentindo tão bem, pois a coceira se intensificara e iniciou-se um quadro de dor de cabeça seguida de vômitos e confusão mental. Após várias horas neste estado a família resolveu encaminhá-los ao hospital. O tio “Zé” foi para um hospital do SUS, enquanto o “Sabichão”, para um hospital particular. Ambos tiveram inicialmente um diagnóstico de meningite. Fizeram uma série de exames, sem diagnóstico preciso, no entanto foi iniciado o tratamento com antibióticos. O tio “Zé” quando estava sendo atendido por uma médica, num momento de lucidez (que momentaneamente ela achou que ele delirava) disse que havia comido uma lesma. Como ele insistiu várias vezes neste assunto, ela resolveu pesquisar na internet as palavras “meningite” e “molusco”. Daí ela deparou-se com o artigo (Caldeira RL, Carvalho OS, Mendonça CLFG, Graeff-Teixeira C, Silva MCF, Ben R, Maurer R, Lima WS, Lenzi HL 2003. Molecular differentiation of Angiostrongylus costaricensis, A. cantonensis, and A. vasorum by Polymerase Chain Reaction and Restriction Fragment Length Polymorphism. Mem Inst Oswaldo Cruz 98: 1039-1043). Este artigo foi parte da minha tese de doutorado, onde foi estabelecido um diagnóstico rápido e específico para Angiostrongylus costaricensis, causador da angiostrongiliase abdominal, até então o único parasito deste gênero que acometia humanos no Brasil. Para esse estudo foram utilizadas amostras de outras duas espécies, Angiostrongylus vasorum (causador de doença cardíaca em cães) e Angiostrongylus cantonensis (causador da meningoencefalite eosionofilica em humanos).

Quando a Dra. percebeu que essa meningite poderia ser a tal da meningoencefalite eosionofilica ela rapidamente notificou a Secretaria Municipal de Saúde, que notificou a Secretaria Estadual, que notificou o Ministério da Saúde (MS). O ministério entrou em contato por sermos Referência Nacional em Esquistossomose, com ênfase nos hospedeiros intermediários. Muitas vezes, nós somos acionados pelo MS, em casos que envolvem moluscos.

Eu quem recebi o telefonema do MS e quando eles relataram o acontecido, fiquei surpresa e, inicialmente pensei que não seria possível, pois até então não havia relatos na América do Sul da meningoencefalite. Mas, prontamente solicitamos que eles nos enviassem amostras dos moluscos para submetê-los ao nosso diagnóstico molecular. Os moluscos chegaram numa sexta-feira, e Cristiane Lafetá Furtado de Mendonça (Tecnologista do Laboratório de Helmintologia e Malacologia Médica – LHMM/Centro de Pesquisas René Rachou/Fiocruz Minas- CPqRR) e eu, ficamos o fim de semana processando as amostras, eram muitos moluscos e a resposta tinha que ser rápida. Inicialmente, trituramos os moluscos e verificamos a presença de larvas. Foi o nosso primeiro choque… A quantidade de larvas era muito superior a de qualquer exame de infecção experimental que já tínhamos feito, a placa na qual fazíamos o exame parecia que estava se movendo de tanta larva. Mas até então, poderia ser larva de qualquer verme, pois vários utilizam moluscos como hospedeiros intermediários. No entanto, o resultado molecular mostrou que realmente se tratava de A. cantonensis. Quando notificamos o ministério, houve uma mobilização geral, fomos Omar dos Santos Carvalho (Líder de Pesquisa do grupo LHMM), Cristiane e eu, convocados para compor a equipe do EPISUS (Programa de Treinamento em Epidemiologia Aplicado aos Serviços do Sistema Único de Saúde) que investiga a ocorrência de novas enfermidades no Brasil.

Embarcamos para o município, e eu estava muito curiosa para conhecer os dois rapazes para lhes perguntar: “o que leva uma pessoa a comer uma lesma?”

Chegamos ao local da festa e coletamos várias espécies de moluscos (Figura 1), além de fezes de roedores. A outra parte da equipe fez uma investigação para verificar a presença de outros casos de meningite de causa inespecífica na região. Voltamos à Belo Horizonte, e além de fazermos o diagnóstico molecular, fizemos também o parasitológico, pois foi uma exigência do MS. Realizamos esta parte do experimento no laboratório do meu querido e saudoso Dr. Henrique Lenzi (Laboratório de Patologia/Instituto Oswaldo Cruz – IOC/Fiocruz). Inoculamos larvas recuperadas das lesmas em três diferentes tipos de roedores, e um deles mostrou-se um bom hospedeiro (Rattus novergicus). Recuperamos desse animal vermes adultos de A. cantonensis e documentamos esses achados no artigo Caldeira et al 2007 (Caldeira RL, Mendonça CLF, Goveia CO, Lenzi HL, Graeff-Teixeira C, Lima WS, Mota EM, Pecora IL, Medeiros AMZ, Carvalho OS 2007. First Record of molluscs naturally infected with Angiostrongylus cantonensis (Chen, 1935) (Nematoda: Metastrongylidae) in Brazil. Mem Inst Oswaldo Cruz 102: 887–889).

E os rapazes?… Após nosso primeiro diagnóstico, a médica alterou o tratamento para corticóides e os pacientes começaram a se recuperar. Um deles ficou cego temporariamente, mas já recuperou a visão. Eles ficaram afastados do trabalho por aproximadamente uns seis meses.

Bem, fomos conhecê-los é claro! Tive que fazer a pergunta que não queria se calar…”o que faz um homem comer uma lesma?” então eles nos contaram sobre a aposta na festa. Pensei por alguns instantes e disse:

– “Neste caso seria melhor você ser um rato, pelo menos não teria sofrido tanto, pois ele é o hospedeiro natural deste parasito.”

 

 

 

Moluscos

Figura 1: Moluscos capturados em Cariacida (2007) e nos portos (2012). A) Achatina fulica; b) Bradybaena similaris; c) Sarasinula marginata; d) Subulina octona

 

Quando retornamos, o MS financiou um projeto para verificação da presença dessas larvas em outras cidades brasileiras, para quem sabe, no caso de introdução recente, algum programa de retenção e eliminação pudesse ser feito. A nossa hipótese da introdução do parasito no Brasil foi a de que ele veio em grandes embarcações (ou com os ratos ou com moluscos que embarcam com os alimentos). Então focamos nosso estudo nos grandes portos brasileiros, onde fazíamos coletas e exames dos moluscos terrestres. Foram investigados 30 portos, pertencentes a 28 municípios de 16 estados e encontramos o parasito em 11 portos (Figura 2). As espécies de moluscos foram Subulina octona, Sarasinula marginata, Achatina fulica e Bradibaena similaris (Figura 1) (Carvalho OS, Scholte RGC, Mendonça CLF, Jannotti-Passos LK, Caldeira RL 2012. Angiostrongylus cantonensis (Nematode: Metastrongyloidea) in molluscs from harbour areas in Brazil. Mem Inst Oswaldo Cruz, 107(6): 740-746).

 

 

mapaBrasil

Figura 2: Mapa do Brasil com a localização dos portos investigados e a identificação das espécies de moluscos coletadas infectados ou não pelo Angiostrongylus cantonensis (Carvalho et al 2012).

Uma curiosidade

Logo após essa descrição, Omar me contou uma história curiosa: “O ano era 1968, mês de setembro, a instituição: a antiga escola de Farmácia da UFMG, o local: a sala de aula prática de parasitologia, o professor: Geraldo Chaia (também pesquisador e chefe do antigo laboratório de Helmintíases Intestinais deste Centro de Pesquisas), um dos alunos era Omar Carvalho. O prof. Chaia voltava com alguns pesquisadores mineiros do VIII International Congress on Tropical Medicine & Malaria que naquele ano ocorreu na capital do Irã, Teerã, ainda na época do Xá Mohammad Reza Pahlavi. Ao iniciar a aula o Prof. começou a contar “causos” do Irã e ao falar do Congresso mencionou a apresentação de um pesquisador sobre a ocorrência de um parasita chamado Angiostrogylus cantonensis, que tinha as cores do time do Vila Nova (Nova Lima), cujo ciclo ocorria entre roedores e moluscos terrestres. O homem podia se infectar causando problemas neurológicos em decorrência da passagem de larvas pelo cérebro. Omar se interessou pelo assunto e procurou o prof. Chaia após a aula e falou do seu interesse em trabalhar com aquele parasita. O Professor marcou sua ida ao CPqRR para a segunda-feira seguinte para conversarem. Acertaram o início do estágio voluntário (naquela época era permitido) e ele começou a capturar roedores, sacrificá-los e procurar pelas larvas no cérebros dos animais. Ao mesmo tempo capturavam moluscos, digeriam e pesquisava larvas no sedimento. Esta rotina durou cerca de um ano, ao final do qual, o Prof. desistiu das pesquisas. “Esse bicho não tem por aqui.” Foi assim que Omar entrou para o CPqRR em 1968. Decorridos 39 anos, em 2007, nosso grupo descrevia pela primeira vez a presença do A. cantonensis no Brasil.

É esse o caso inusitado, espero que tenham gostado… Sou Roberta Lima Caldeira, pesquisadora do LHMM. Estou no CPqRR desde a minha Iniciação Científica em 1993 e tenho “orgulho de ser Fiocruz”.

 

Observações:

  • Os nomes dos pacientes são fictícios.
  • Fiocruz – Fundação Oswaldo Cruz
  • Mem Inst Oswaldo Cruz – Revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz