Ernest Paulini

 

Ernest

Ernest Paulini Imagem: Acervo da Fiocruz Minas

 

Cloroquina. Sobre essa substância se depositaram muitas esperanças para o tratamento e a cura da Covid-19. No decorrer da pandemia que assola o mundo desde 2020, com milhares de pessoas mortas, o contágio de milhões, a paralisação das atividades econômicas e o isolamento massivo da população do planeta, tornou-se urgente a busca por uma solução capaz debelar a doença. Estudos preliminares apontaram que o uso do fármaco poderia ser promissor, contudo, aprofundando-se as pesquisas, constatou-se que, “Não há evidências científicas favoráveis que sustentem o uso de CQ [cloroquina] […] em qualquer dose ou estádio da Covid-19, quer no nível individual quer no de políticas públicasâ€.[1]

Mas a cloroquina não é uma substância nova, ela é velha conhecida dos cientistas, e usada no tratamento, por exemplo, da malária. O engenheiro químico Ernest Paulini foi um dos pesquisadores envolvido nos esforços mundiais, desde meados do século XX, para teste da eficácia da cloroquina no combate à malária. Paulini, nascido na Hungria, e tendo imigrado para o Brasil em 1948, começou a trabalhar no Instituto de Malariologia, que funcionava no Rio de Janeiro, atuando na fabricação do inseticida BHC.[2] Por questões logísticas, o Instituto foi reinstalado em Belo Horizonte, no ano de 1955, e Paulini foi transferido para a capital mineira juntamente com outros funcionários. Logo em seguida o Instituto passou a chamar-se Centro de Pesquisas de Belo Horizonte, posteriormente renomeado como Instituto René Rachou. No local, o cientista húngaro assumiu a chefia do Laboratório de Química e Inseticidas entre 1955 e 1970, tendo como assistente, no início, o farmacêutico e bioquímico José Pedro Pereira. Até o ano de 1971, o moluscário da Instituição pertencia a esse laboratório. Ali se desenvolviam pesquisas sobre a “análise e controle de inseticidas e de moluscicidas usados pelo governo nas campanhas de vetores de endemias ruraisâ€.[3]

Um dos estudos mais importantes em que se envolveu o pesquisador foi sobre o uso do sal cloroquinado para o combate à malária. O método foi concebido pelo médico Mário Pinotti, com longa carreira em órgãos de promoção da saúde pública, incluindo a direção do Serviço Nacional de Malária e do Ministério da Saúde. O “Método Pinotti†propunha misturar, como medida profilática, “difosfato de cloroquina (Aralen) com o sal de cozinha, para ser distribuído […] às populações das regiões endêmicas, substituindo o sal comum na sua alimentação diáriaâ€,[4] como alternativa ao uso de inseticidas, cuja ação deixava resíduos no ambiente e preocupava pela toxicidade. Ernest Paulini fazia parte da equipe que investigava a eficácia do método, pesquisando a estabilidade da substância quando submetida ao cozimento, trabalho que foi apresentado em congressos no ano de 1952.[5] Em 1959, o engenheiro químico foi convidado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), para organizar ensaios sobre o uso da substância em países da Ãfrica e da Ãsia, uma experiência que ficou marcada na vida do cientista, “Todas essas viagens me revelaram a grande variedade de condições de vida dos povos que visitei e sua capacidade de vencer empecilhos, como secas, inundações e catástrofes de toda naturezaâ€.[6] No decorrer dos seus estudos, Paulini ressaltou que o sal cloroquinado só se mantinha estável em ambientes com menos de 80% de umidade.[7] Com os avanços no estudo da malária, o sal cloroquinado deixou de ser uma opção viável no início da década de 1960.[8] Contudo, essas pesquisas constituíram um marco importante para o entendimento dos métodos e estratégias de combate à doença, e dos mecanismos de ação da cloroquina. Em razão de suas contribuições nesse campo, Paulini integrou grupo de estudo sobre a malária, formado em 1960, encarregado de avaliar os resultados da Campanha contra a Malária no país.[9]

Mas a carreira do cientista foi diversa, ele atuou na pesquisa do controle da esquistossomose, testando o uso de produtos químicos moluscicidas. Para desenvolver esse trabalho recebeu bolsa da Fundação Rockfeller, na Itália. Sobre o tema escreveu diversos artigos, alguns deles em coautoria com outros pesquisadores do Instituto René Rachou, como José Pellegrino e José Pedro Pereira. Foi integrante do Grupo de Estudos sobre a Esquistossomose, que avaliou as ações governamentais contra a doença na década de 1960.[10] No ano de 2008, o engenheiro químico recebeu a Medalha Pirajá da Silva, por suas contribuições nos estudos da esquistossomose.

Ernest Paulini também desenvolveu importantes trabalhos na área de doença de Chagas. Ele testou inseticidas, como o clorpirifós, para o combate aos triatomíneos,[11] e investigou a ação de feromônios, e da temperatura, sobre o comportamento desses insetos.[12] Além disso, experimentou o método de marcação dos barbeiros com radioisótopos.[13] Pelo destaque dos seus estudos sobre doença de Chagas, ele recebeu, em 2009, uma placa em sua homenagem, concedida pelo Centro de Pesquisas René Rachou.

No início da década de 1950, Paulini ingressou como professor assistente da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), até chegar a professor emérito (1994),[14] integrando o Departamento de Engenharia Química, do qual foi um dos fundadores.[15] Por volta de 1970, com a mudança de regime estatutário do funcionalismo público, ele optou pela colocação na universidade, mas continuou a atuar nos laboratórios do Centro de Pesquisas René Rachou. Foi vice-diretor da Escola de Engenharia da UFMG entre 1979 e 1982,[16] e membro fundador da Associação Brasileira de Engenharia Química, integrando a diretoria da instituição entre 1975 e 1976.[17]

A partir de 1972, E. Paulini desenvolveu pesquisas pioneiras sobre poluição atmosférica. Em parceria com o médico Thelmo Quick, publicou o trabalho, Contribuição ao Estudo da Poluição Atmosférica e das Doenças Pulmonares em Belo Horizonte. “Os autores coletaram dados sobre a poluição do ar […] no centro da cidade de Belo Horizonte e na Cidade Industrial de Contagem. O objetivo era avaliar a grandeza do problema da poluição […]. Um dos focos da análise recaiu sobre a coleta de dados referentes às doenças das vias respiratórias em crianças que viviam na Cidade Industrialâ€.[18] O estudo revelou que no túnel Concórdia-Lagoinha, o monóxido de carbono alcançava nível “letal para os ocupantes dos veículos. Muitas pessoas sentiam náuseas ao percorrer o túnel, especialmente nas horas mais movimentadasâ€.[19] A pesquisa recebeu o prêmio Baeta Vianna da Academia Mineira de Medicina,[20] e foi um marco para o diagnóstico e controle da poluição urbana na região metropolitana da capital mineira, em um contexto de euforia desenvolvimentista, que pregava a industrialização do país a qualquer custo.[21] Paulini, que sempre estudou o impacto dos inseticidas nos ambientes físicos, continuou a interessar-se pela temática ambiental. Em 1988, o Jornal do Brasil publicou matéria noticiando que o professor supervisionaria a construção de um biodigestor, na comunidade Acaba Mundo, capaz de “eliminar dejetos animais e matéria orgânica, obtendo gás para uso em cozinhaâ€. Segundo o cientista, a criação de porcos, aliada à falta de saneamento básico, causava problemas de saúde nesses locais.[22]

Ernest Paulini faleceu em 2013. Atuou como professor e foi orientador de muitos alunos, sendo precursor de estudos no campo da poluição atmosférica. Deixou um vasto trabalho científico, em química de inseticidas e toxicologia, atuando em pesquisas sobre malária, doença de Chagas e esquistossomose. Por ser especialista em química, ele foi importante parceiro de trabalho para colegas do Instituto René Rachou, que com ele publicaram diversos artigos científicos. Tendo sofrido as agruras das conturbações políticas europeias, imigrou para o Brasil em busca de uma nova vida, deixando, como legado para o país que o abrigou, valiosíssima contribuição cientifica.

 

Projeto Memória. Trajetória histórica e científica do Instituto René Rachou – Fiocruz Minas.

Coordenador: Dr. Roberto Sena Rocha.

Texto de: Natascha Stefania Carvalho De Ostos – Doutora em Historiadora

[1] ENSP. Informe ENSP. Nota sobre o uso da cloroquina / hidroxicloroquina para o tratamento da COVID-19. Disponível em: <http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/48989>.

[2] PAULINI, Ernest. O passado revisitado: o Instituto de Malariologia e o Instituto de Endemias Rurais (INERu). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. 11, jan.-abr. 2004, p. 144, p. 147.

[3] FIOCRUZ. Centro de Pesquisas René Rachou – A Fundação Oswaldo Cruz em Minas Gerais. Belo Horizonte: Fiocruz, 2000, p. 30.

[4] SANTOS, Paulo R. Elian dos. Inovação em saúde e desenvolvimento nacional: origens, criação e atuação do Instituto de Malariologia (1946-1956). Revista Rio de Janeiro, n. 11, set.-dez. 2003, p. 15.

[5] PAULINI, Ernest. O passado revisitado, Ibidem, p. 151.

[6] PAULINI, Ernest. Idem, p. 157.

[7] PAULINI, Ernest. Further Studies on Chloroquinized table salt. Revista Brasileira de Malariologia e Doenças Tropicais, v. XII, n. 2, abr. 1960, p. 343, apud, ANDRADE, Rômulo de Paula. A Amazônia na Era do Desenvolvimento: saúde, alimentação e meio ambiente (1946-1966). Tese em História. Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz. Rio de Janeiro, 2012, p. 251.

[8] FIOCRUZ. ‘Sal Pinotti’ contra a malária na Amazônia. Notícias. História, Ciência, Saúde – Manguinhos, jul. 2025. Disponível em: <http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/sal-pinotti-contra-malaria-na-amazonia/>.

[9] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Campanha contra a Malária. In: Combate a Endemias Rurais no Brasil. (Relatórios dos Grupos de Trabalho reunidos em 1960 na cidade do Rio de Janeiro). Departamento Nacional de Endemias Rurais, DNERu. Guanabara, 1962, p. 137.

[10] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Campanha contra a Esquistossomose. In: Combate a Endemias Rurais no Brasil. (Relatórios dos Grupos de Trabalho reunidos em 1960 na cidade do Rio de Janeiro). Departamento Nacional de Endemias Rurais, DNERu. Guanabara, 1962, p. 79.

[11] NEVES, D. P.; PAULINI, E.. Eficácia do dursban 2e (clorpirifos) no combate a triatomíneos. Revista brasileira de biologia, vol. 40, n. 3, ago. 1980, p. 537-545.

[12] NEVES, D. P.; PAULINI, E.. Repelência entre panstrongylus megistus, triatoma infestans e T. sordida (hemiptera, reduviidae), por ação de feromônios. Revista Brasileira de Entomologia, vol. 26, n. 3-4, p. 349-354, 1982; NEVES, D. P.; PAULINI, E… Ação da temperatura sobre o comportamento de Triatoma Infestans (Klug , 1834) e do Panstrongylus Megistus (Burmeister, 1835) (Hemiptera, Triatominae). Anais da Sociedade Entomológica do Brasil, vol. 10, n. 2, dez. 1981), p. 199-208.

[13] NEVES, D. P.; PAULINI, E.; FERREIRA, V. M.. Marcação de panstrongylus megistus (hemiptera, triatominae) com radioisótopos.
Revista brasileira de malariologia e doenças tropicais, n. 34, p. 93-100, 1982.

[14] UFMG. Ata da 1137ª reunião da egrégia congregação da Escola de Engenharia da UFMG. Disponível em: < https://www.eng.ufmg.br/portal/wp-content/uploads/2014/03/Ata-1137-de-04-10-2013.pdf>.

[15] UFMG. Departamento de Engenharia Química. Disponível em: <http://deq.ufmg.br/departamento/Histria>.

[16] UFMG. Escola de Engenharia. Disponível em: <https://www.eng.ufmg.br/portal/aescola/historico/>.

[17] ABEQ. Associação Brasileira de Engenharia Química. Disponível em: <https://www.abeq.org.br/gestoes-anteriores-6/>.

[18] SILVA, Renata Cristina. Poluição do ar e conflitos socioambientais. O caso da fábrica Itaú – Contagem – Minas Gerais (1975-88). Dissertação em História. UFMG, 2018, p. 47-48.

[19] DUARTE, Regina Horta.  “Eu quero uma casa no campoâ€: a busca do verde em Belo Horizonte, 1966-1976. Topoi, vol. 15, n. 28, jan./jun. 2014, p. 172.

[20] SILVA, Renata Cristina. Idem, p. 47.

[21] DUARTE, Regina Horta. Poluição em Belo Horizonte (Homenagem a Ernest Paulini). Programa As Quatro Estações, n. 47. Rádio UFMG. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=o7eAj_I9bZg&fbclid=IwAR1BugSpG98SXd6U5neSGnd1OxETJ3Gp2C0T1jnmqSk-qCD3k7ZnZG_B1Xo>.

[22] Favela Acaba Mundo vai ter um biodigestor. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, n. 15, 23 abr. 1988, p. 8.