Lassance (MG), palco de uma das maiores descobertas científicas do século XX

Entre meados do século XIX e as primeiras décadas do século XX, o Brasil assistiu à criação e à expansão de sua malha ferroviária, que atingiu o auge em 1925. A intenção era integrar o país, aproximando a região litorânea, densamente povoada e economicamente desenvolvida, com os sertões, no interior do país. O impulso para tal investimento veio da atividade cafeeira, necessitada de um meio de transporte mais eficiente para escoar a produção.[1] Nesse movimento, fundaram-se novas cidades, interligaram-se áreas isoladas, melhorando o fluxo do abastecimento, do comércio e a circulação de notícias.

Contudo, a abertura de ferrovias também implicou no surgimento de problemas. As frentes de trabalho empregavam uma grande quantidade de operários, que viviam em condições insalubres, em acampamentos montados no meio das matas, enfrentando toda sorte de condições adversas, como alimentação precária, falta de higiene e de água tratada, além do perigo das mordidas de cobras e picadas dos insetos, que transmitiam toda sorte de doenças, principalmente a malária.

Em 1907, Carlos Chagas, cientista de Manguinhos, foi indicado para combater a malária em Minas Gerais, em uma frente de trabalho da Estrada de Ferro Central do Brasil, que “prolongava os trilhos de sua linha de centro, nas imediações do rio Bicudo, afluente do rio das Velhas, entre Corinto e Pirapora”.[2] A situação dos operários era dramática, como evidencia o relato de um trabalhador, que por meio de carta enviada a um jornal mineiro, denunciava os fatos, “acho-me atacado pelo terrível impaludismo e sem meios de tratar-me […] Cada vez mais vai-se tornando impossível a vida do pobre operário da Central! […] Vale mais morrer à fome do que ser trabalhador da Central neste trecho”, e termina assinando “Um das vítimas do impaludismo”.[3]

Carlos Chagas, acompanhado do médico Belisário Penna, montou um laboratório improvisado em um vagão de trem, no lugarejo de São Gonçalo das Tabocas, localizado à margem do rio das Velhas, e que, em 1908, passou a designar-se Lassance, em homenagem ao engenheiro Ernesto Antônio Lassance Cunha.[4] Em uma de suas excursões de pesquisa, os cientistas capturaram “um inseto sugador de sangue muito comum na região […]. Era conhecido vulgarmente como ‘barbeiro’, pelo hábito de picar o rosto de suas vítimas enquanto dormiam”.[5] Esses insetos (triatomíneos), passaram a infestar a região com a abertura da estrada de ferro, realizada à custa de grande desmatamento, desequilibrando o ecossistema da área. O inseto encontrou novo habitat nos casebres pobres, feitos de barro, com acabamento rústico, propiciando esconderijo perfeito, de onde saíam à noite para picar as pessoas.

As investigações feitas por Carlos Chagas constataram que os insetos eram vetores de um protozoário nunca antes identificado, o Trypanosoma cruzi, assim chamado em homenagem a Oswaldo Cruz. Com a continuação dos estudos Carlos Chagas descobriu, em 1909, o parasita no sangue humano, em Berenice, uma criança que entrou na história como a primeira paciente confirmada da nova patologia, chamada Doença de Chagas. Os sintomas eram a febre, surgimento de gânglios, aumento do baço e do fígado, alterações cardíacas, sendo que as meninges também podiam ser afetadas, causando sérios problemas neurológicos. A descoberta foi publicada em periódicos científicos nacionais e internacionais, e logo passou a ser noticiada na imprensa, levando notoriedade aos cientistas envolvidos, a Manguinhos e à cidade de Lassance. A partir de então o lugarejo se transformou no epicentro de um grande debate científico, local de peregrinação de estudiosos, de jornalistas interessados no tema e da atenção das autoridades públicas. No ano de 1911, Carlos Chagas apresentou, na Exposição Internacional de Higiene de Dresden, na Alemanha, um filme de 9 minutos, com cenas de doentes com sintomas neurológicos e motores, que sequer conseguiam ficar de pé.[6] O filme, hoje intitulado Chagas em Lassance, fez sucesso na Exposição, e ajudou a divulgar não apenas a nova patologia, como também as pesquisas do Instituto Oswaldo Cruz e a situação calamitosa em que vivia a população pobre do interior do país.

As reportagens sobre a doença se multiplicaram nos impressos da época, sempre destacando a cidade de Lassance, imprimindo um tom que exaltava a descoberta científica e, ao mesmo tempo, denunciava as condições de vida dos habitantes da região. Porém, muitas vezes, a narrativa – que visava impressionar o público – também estigmatizava os moradores da área, expondo rudemente os doentes, como era comum à época.

Imagens que compõe a matéria “Os effeitos terriveis da molestia de Chagas”. In: A Noite, Rio de Janeiro, ano II, n.371, 21 setembro 1912, p. 1. Acervo: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

 

As imagens acima eram acompanhadas por extensa legenda, informando que as duas mulheres fotografadas estavam acometidas pela “forma nervosa” da doença, “convertidas em verdadeiros monstros, dois ‘Quasimodos’ […] Completamente imbecis, o seu aspecto causa horror”. Para completar o quadro, as casas retratadas foram descritas como “ninhos do ‘barbeiro’, o sinistro inseto que produz a moléstia. Essas palhoças são as residências de funcionário da Central de Lassance!”.[7] Tais fotografias descortinavam para o público letrado outro Brasil, abandonado pelo poder público, miserável e insalubre. O diagnóstico do país como um “grande hospital” impulsionou a construção de um projeto nacional que fosse capaz de debelar as doenças tropicais, sanear a nação, tornando a população do interior fisicamente apta para o trabalho. No ano de 1912 foi liberada uma verba federal para a construção de um Hospital em Lassance, visando dar continuidade às pesquisas sobre a Doença de Chagas. Mas a promessa de apoio governamental não se sustentou ao longo do tempo e, em 1914, o Instituto Oswaldo Cruz relatou que os estudos somente se mantiveram em razão da “renda proveniente da vacina contra a peste da manqueira”, já que “deixou o Congresso de votar verba”.[8]

Para os jornais locais, especialmente O Pirapora e O Echo de Lassance, Carlos Chagas e a equipe de Manguinhos eram verdadeiros heróis. Não apenas pelo seu trabalho científico e de apoio à população doente, como pelo fato da descoberta da nova patologia estabelecer uma “situação biológica” para o que era descrito como a letargia ou a “preguiça” dos habitantes, “Até então acreditávamos que era ela devido a corrupção da raça, ao influxo das inclemências climatéricas, […]. Agora, que conhecemos seu único fator, […] não é natural que cruzemos os braços diante do inimigo, formidável que seja”. O jornal encerrava a coluna instando as autoridades a tomar a questão “como merece – como verdadeiro problema social”.[9] Essa passagem é importante porque indicava certa inflexão na compreensão das causas históricas para o subdesenvolvimento do país. Ao longo do século XIX diversas teorias científicas disputavam espaço para explicar o “atraso” dos nacionais, por vezes apontando a mistura das “raças” como responsável pela “degeneração” social, outras vezes responsabilizando condições climáticas adversas, como a “insalubridade” dos trópicos, e sua influência negativa no caráter dos povos. Mas, com o avanço das descobertas científicas de laboratório, outras possibilidades foram colocadas; o mal coletivo não seria atávico ou intransponível, pois eram as doenças endêmicas, e a situação de miséria dos brasileiros, as causas de tamanha indigência.[10] Desse ponto de vista, cuidar da questão social aflorava como um ponto tão importante para o avanço do país quanto o tratamento dos doentes e a prevenção de contaminações.

A partir de então, a cidade de Lassance deixou de assinalar um simples topônimo, desconhecido da maior parte dos brasileiros, para indicar múltiplos sentidos: lugar de doença, mas também de cura; local humilde, mas, ao mesmo tempo, palco de uma grande descoberta científica. Talvez, não por acaso, no ano de 1956, o escritor João Guimarães Rosa, ao publicar o livro Grande Sertão: Veredas, finalize a obra com o personagem Riobaldo empreendendo uma viagem de luto, em busca das origens da valente Diadorim. O ponto final da extensa jornada foi assinalado pela chegada “a um lugar, nos gerais de Lassance”.[11] Lassance, marcada no imaginário mineiro como lugar de buscas, de origens e de fins.

 

Capa do jornal O Echo de Lassance, em homenagem a Carlos Chagas. In: O Echo de Lassance. Estação de Lassance, Minas Gerais, ano I, n. 10, 25 agosto 1911. Acervo: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

 

Projeto Memória. Trajetória histórica e científica do Instituto René Rachou – Fiocruz Minas.

Coordenadores: Dr.ª Zélia Maria Profeta da Luz; Dr. Roberto Sena Rocha.

Historiadora: Dr.ª Natascha Stefania Carvalho De Ostos.

Texto de: Natascha Stefania Carvalho De Ostos – Doutora em História

 

[1] LIMA, Pablo. Ferrovia, sociedade e cultura, 1850-1930. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015.

[2] BENCHIMOL, Jaime Larry; SILVA, André Felipe Cândido da. Ferrovias, doenças e medicina tropical no Brasil da Primeira República. Hist. cienc. saude-Manguinhos,  v. 15, n. 3, p. 719-762,  sept.  2008.

[3] O Echo de Lassance. Estação de Lassance, Minas Gerais, ano I, n. 4, 31 maio 1911, p. 2.

[4] DIAS, João Carlos Pinto et al.. Doença de Chagas em Lassance, MG. Reavaliação clínico-epidemiológica 90 anos após a descoberta de Carlos Chagas. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, 35(2): 167-176, mar-abr, 2002, p. 168.

[5] KROPF, Simone Petraglia. Doença de Chagas, Doença do Brasil: ciência, saúde e nação, 1909-1962. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2009, p. 97.

[6] Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/noticia/chagas-em-lassance>.

[7] Os effeitos terriveis da molestia de Chagas. A Noite, Rio de Janeiro, ano II, n.371, 21 set. 1912, p. 1.

[8] Instituto Oswaldo Cruz. Relatório do Ministério da Justiça. Rio de Janeiro, 1914, p. 28.

[9] Problema social. O Echo de Lassance. Estação de Lassance, Minas Gerais, ano I, n. 8, 20 julho 1911, p. 1.

[10] LIMA, Nísia Trindade de. Um Sertão Chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan: IUPERJ, UCAM, 1999.

[11] ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 620.