O combate à Leishmaniose no Vale do Rio Doce (MG)

No ano de 1965 um jornal brasileiro publicou matéria com o seguinte título: “Febre de Cachorro” é calamidade pública em todo o Vale do Rio Doce.[1] A notícia relatava a ocorrência de muitos casos de leishmaniose que assolavam a região (ver mapa abaixo), chamando a atenção das autoridades públicas. Até hoje essa doença, que se apresenta de diversas maneiras, é um problema em muitas partes do mundo, principalmente em países pobres. A leishmaniose visceral, também conhecida como Calazar, é a forma mais grave, podendo atingir órgãos como o fígado e o baço. Já as formas tegumentares, podem apresentar-se como leishmaniose cutânea ou mucosa que variam de gravidade. O parasita responsável pelas leishmanioses é um protozoário, e sua transmissão ocorre pela picada de insetos, flebotomíneos.[2]

Mapa da região afetada por surto de leishmaniose na década de 1960. In: MAGALHÃES, P. A. et al. Calazar na Zona do Rio Doce – Minas Gerais. Resultados de Medidas Profiláticas. Rev. Inst. Med. trop. São Paulo, vol. 22, n. 4, jul.-ago. 1980, p. 198.

 

A década de 1960, com ênfase no triênio de 1964-1966, marcou o crescimento da economia de Minas Gerais, em razão da expansão de projetos de grande porte relacionados à mineração.[3] A região do Vale do Rio Doce, localizada no leste de Minas Gerais e parte do Espírito Santo, sofreu intensa exploração econômica ao longo do século XX, principalmente com a implantação de grandes empresas mineradoras na área. O desmatamento das florestas nativas foi grande, dando lugar a plantações de eucalipto, vastas áreas de pastagens, ferrovias e hidroelétricas, além da expansão descontrolada de áreas urbanas.[4] Todas essas mudanças sociais e ambientais colaboraram para a ocorrência de um surto de leishmaniose em parte da região, cuja maior notificação também pode estar relacionada à melhoria na assistência pública à saúde.[5] A leishmaniose é considerada uma zoonose, portanto uma doença transmissível de animais para seres humanos, dependendo de circunstâncias específicas para ocorrer. O desmatamento e a invasão urbana sobre áreas de vegetação nativa configuram situações que facilitam a contaminação, sendo uma condição frequente no meio rural. Nas cidades, a falta de saneamento básico, o acúmulo de lixo e de matéria orgânica, atraem os flebótomos, conhecidos como mosquito palha.

O primeiro caso indiscutivelmente autóctone de Calazar humano relatado em Minas Gerais, no Vale do Rio Doce, ocorreu no ano de 1953, no município de Itanhomi, em área de Mata Atlântica, que sofreu grande devastação ao longo da metade do século XX. Ficou estabelecida a existência de um foco, com maior incidência em locais úmidos, próximos a córregos e rios. Desde 1956 a região era monitorada por cientistas do Centro de Pesquisas de Belo Horizonte, atual Instituto René Rachou, que publicaram artigos sobre o tema, como o trabalho intitulado Calazar Autóctone em Minas Gerais, de autoria de Amilcar Vianna Martins, Zigman Brener, e outros colaboradores.[6] Naquele momento, os pesquisadores já ressaltavam que “as devastações que ali são sistematicamente praticadas tornaram as matas escassas, formando apenas ilhas de vegetação isoladas”.[7] O Centro continuou a fazer investigações na região ao longo da década de 1960, “para comprovar a positividade da doença, medir a extensão da área e sentir a real gravidade do problema”.[8] Na época, Raimundo de Siebra de Brito era chefe da circunscrição de Minas Gerais do Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERu), e ele deslocou para atuar na região o médico Paulo Araújo Magalhães. O setor operacional desse órgão cuidava da assistência direta aos doentes, da eliminação dos cães doentes e outras medidas sanitárias. O Centro de Pesquisas de Belo Horizonte, braço do Instituto Nacional de Endemias Rurais (INERu), que por sua vez integrava a estrutura do DNERu, foi fundamental na campanha de erradicação do surto, prestando serviços de investigação.

Os jornais qualificavam a situação como de calamidade pública, informando que, “A moléstia vem preocupando os sanitaristas e levando angústia e emoção aos lares de residências urbanas e rurais”.[9] Em 1965 o Centro de Pesquisas de Belo Horizonte participou das campanhas nos municípios de Teófilo Otoni e Itanhomi (que apresentaram 72 casos em humanos), tendo realizado 101 exames sorológicos.[10] Nesse período, Marcello de Vasconcellos Coelho era o chefe do Laboratório de Leishmaniose do Centro, e também diretor da instituição. Segundo o renomado pesquisador Wilson Mayrink, os cientistas Amilcar Vianna Martins e Marcello de Vasconcellos Coelho indicaram o seu nome para trabalhar ao lado de Paulo Araújo Magalhães, “Realizamos um grande trabalho de Epidemiologia – Diagnóstico Profilaxia – Tratamento da endemia, tanto da forma visceral que naquele momento constituía um grave flagelo na região, como da forma cutânea-mucosa”.[11] Foi a partir desse episódio, capaz de congregar pesquisadores e médicos sanitaristas de variadas instituições, que Wilson Mayrink solidificou o seu itinerário de pesquisas no campo da leishmaniose. Anos depois ele desenvolveu a primeira vacina contra essa doença no mundo.

Coube ao Laboratório de Leishmaniose do Centro de Pesquisas de Belo Horizonte estudar os “vários aspectos da epidemiologia do Calazar, no vale do rio Doce”[12], promovendo inquérito sorológico. As pessoas esperavam os resultados com ansiedade, e em algumas famílias, “Em seis pessoas, cinco estavam atacadas do terrível mal”.[13] Além disso, era preciso passar pelo trauma do sacrifício dos cães infectados, medida impopular, que provocava resistência. A colaboração do Centro ocorreu também por meio de testes realizados no Laboratório de Sorologia, principalmente na pessoa do pesquisador Sebastião Mariano Batista, primeiro chefe desse setor, criado no ano de 1955. O cientista publicou trabalho sobre o assunto, em parceria com colegas de outras instituições, relatando o quadro encontrado na região do Vale do Rio Doce, as iniciativas tomadas e a evolução da situação.[14]

O certo é que, no controle posterior ao surto de leishmaniose de 1965, foi possível constatar a gradativa diminuição dos casos. O esforço das autoridades sanitárias e dos organismos de pesquisa foi grande, envolvendo medidas profiláticas em consonância com os recursos técnicos disponíveis à época, como uso de inseticidas nas residências e o extermínio de cães doentes.

 

tabela

Tabela indicando a evolução dos casos de leishmaniose no Vale do Rio Doce, a partir do surto de 1965. In: MAGALHÃES, P. A. et al. Calazar na Zona do Rio Doce – Minas Gerais. Resultados de Medidas Profiláticas. Rev. Inst. Med. trop. São Paulo, vol. 22, n. 4, jul.-ago. 1980, p. 199.

 

Interessante recordar que foi justamente no fim da década de 1960 que o veterinário e epidemiologista Calvin W. Schwabe propôs o conceito de Medicina Única, para ressaltar a importância da relação entre a saúde humana e a animal, e a necessidade dos especialistas trabalharem essas conexões de modo intencional, tanto nas pesquisas como na prática da saúde pública. O conceito foi apurado, e hoje a Organização Mundial da Saúde usa o termo One Health[15], Saúde Única, para referir-se ao quadro indissociável entre a saúde das pessoas, dos animais e o meio ambiente. Os profissionais envolvidos no combate ao surto de leishmaniose no Vale do Rio Doce estavam conscientes dessas variáveis, e precisaram lidar com as consequências, para a saúde pública, do desmatamento, das atividades econômicas predatórias e do extermínio da fauna. Nos dias de hoje essas relações ocupam, cada vez mais, o centro das reflexões no tocante às zoonoses, em uma perspectiva que visa a prevenção, mas que depende, para sua efetividade, do envolvimento de diferentes setores governamentais, bem como de empreendedores econômicos e da sociedade civil.

 

 

Projeto Memória. Trajetória histórica e científica do Instituto René Rachou – Fiocruz Minas.

Coordenadores: Dr.ª Zélia Maria Profeta da Luz; Dr. Roberto Sena Rocha.

Historiadora: Dr.ª Natascha Stefania Carvalho De Ostos.

 

Texto de: Natascha Stefania Carvalho De Ostos – Doutora em História

 

 

[1] Diário de Notícias. Porto Alegre, 18 fev. 1965, p. 5.

[2] CAMARGO, Luis Marcelo Aranha; BARCINSKI, Marcello André. Leishmanioses, feridas bravas e kalazar. Ciência e Cultura, v. 55, n. 1, jan.  2003, p. 34.

[3] FERNANDES, Cândido Luiz de Lima. Economia e planejamento em Minas Gerais nos anos de 1960 e 1970, RG&T, v.8(1), jan./jul. 2007, p. 15.

[4] COELHO, André Luiz Nascentes. Bacia hidrográfica do rio doce (MG/ES): uma análise socioambiental integrada. Geografares, nº 7, 2009, p. 131-146.

[5] MAGALHÃES, P. A. et al.  Calazar na Zona do Rio Doce – Minas Gerais. Resultados de Medidas Profiláticas. Rev. Inst. Med. trop. São Paulo, vol. 22, n. 4, jul.-ago. 1980, p. 201.

[6] MARTINS, Amilcar Vianna et al. Calazar autóctone em Minas Gerais. Revista Brasileira de Malariologia e Doenças Tropicais, vol. VIII, n. 4, p. 75-86, out./dez. 1956.

[7] MARTINS, Amilcar Vianna et al. Idem, p. 79.

[8] BRITO, Raimundo Siebra de. Caçando ratos e matando mosquitos. Impressões de um sanitarista. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1986, p. 107

[9] Diário de Notícias. Ibidem.

[10] DENERu. Folhas de Atualidades em Saúde Pública, Rio de Janeiro, n. 5, maio 1965, p. 15.

[11] Sessão Solene da Academia Mineira de Medicina. Posse do Acadêmico Wilson Mayrink, 15 de set. 1998. Discurso de Posse, p. 13. Disponível em: <http://www.acadmedmg.org.br/ocupante/cadeira-33-3o-ocupante-wilson-mayrink/>.

[12] DENERu. Folhas de Atualidades em Saúde Pública, Rio de Janeiro, n. 12, dez. 1966, p. 40.

[13] Diário de Notícias. Ibidem.

[14] MAGALHÃES, P. A. et al.  Ibidem, pp. 197-202.

[15] Disponível em: < https://www.who.int/features/qa/one-health/en/>.