Parasito da malária em macacos também pode infectar humanos

17_09_01_ioc_destaque

A partir da análise de casos de malária registrados em região de Mata Atlântica, no estado do Rio de Janeiro, entre 2015 e 2016, pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com cientistas de instituições nacionais e internacionais, demonstraram que um parasito até então conhecido por sua capacidade de infectar macacos é capaz de causar infecção em humanos, o que corresponde a uma zoonose. Técnica de análise de material genético desenvolvida especialmente para o estudo constatou 28 infecções causadas pelo Plasmodium simium. Publicado na revista científica ‘The Lancet Global Health’, o trabalho traz uma contribuição fundamental, já que esta é a descrição do segundo foco no mundo com transmissão de malária zoonótica, além da transmissão de P. knowlesi de macacos a humanos constatada na Malásia na Ásia. A evidência pode corresponder à descrição de um sexto tipo de malária humana.

“Estamos diante de uma descoberta de relevante impacto para a saúde pública, por representar uma nova forma de infecção. No entanto, do ponto de vista da vigilância epidemiológica, os casos de malária que detectamos representam uma parcela mínima dos registros da doença no país. Além disso, todos os pacientes diagnosticados com a infecção apresentaram apenas sintomas leves e se recuperaram rapidamente após o tratamento”, afirma um dos coordenadores do estudo, Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro, chefe do Laboratório de Pesquisa em Malária do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e coordenador do Centro de Pesquisa, Diagnóstico e Treinamento em Malária da Fiocruz (CPD-Mal), centro de referência para diagnóstico da malária na Extra-Amazônia.

Liderado pelo IOC e pelo Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), o trabalho também contou com a colaboração do Instituto René Rachou (Fiocruz-Minas). Também foram parceiros: a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Federal de Goiás (UFG), o Centro Universitário Serra dos Órgãos (Unifeso), o Instituto Estadual do Ambiente do Rio de Janeiro (Inea) e o Programa Nacional de Controle e Prevenção da Malária do Ministério da Saúde, além da Universidade Nova de Lisboa, em Portugal, e da Universidade de Nagasaki, no Japão. No IOC, os Laboratórios de Pesquisa em Malária, de Mosquitos Transmissores de Hematozoários, de Patologia e de Doenças Parasitárias participaram do estudo.

Sinal de alerta

A maior prevalência dos casos de malária no país está na região amazônica, com índice que supera os 99% de todo o registro nacional. Contudo, a crescente constatação de infecções em áreas de Mata Atlântica do estado do Rio de Janeiro – região cujos casos de malária em humanos foram considerados eliminados há cerca de 50 anos – despertou a atenção dos especialistas. Enquanto de 2006 a 2014 o estado do Rio registrava uma média de quatro casos autóctones (locais) de malária por ano, em 2015 e 2016, esse índice subiu para 33 e 16, respectivamente.

Como serviço clínico integrante do Centro de Referência para Tratamento e Diagnóstico da Malária (CPD-Mal/Fiocruz), o Ambulatório de Doenças Febris Agudas do INI atendeu 25 dos 33 casos ocorridos no Rio, em 2015, e 14 dos 16, em 2016, totalizando 39 (80%) dos 49 casos reportados no estado. “Os pacientes apresentavam sintomas um pouco diferentes da malária causada por Plasmodium vivax, usualmente vista na Amazônia, que responde por cerca de 90% das infecções em humanos no país. Os indivíduos reportavam quadro febril prolongado, sendo constante nos primeiros dias e intermitente nos demais. Além disso, a grande maioria tinha histórico de viagem a regiões de Mata Atlântica do Rio, seja por trabalho ou lazer”, explica a médica Patrícia Brasil, chefe do Laboratório de Doenças Febris Agudas do INI.

Investigação minuciosa e complexa

Em quase todos os casos analisados durante as investigações, o diagnóstico inicial – realizado a partir de uma minuciosa e especializada observação ao microscópio dos parasitos presentes no sangue dos pacientes e dos macacos capturados – apontava pequenas diferenças morfológicas entre o parasito encontrado e o P. vivax que comumente infecta indivíduos na região amazônica. As análises indicavam uma maior semelhança entre os parasitos fluminenses e descrições anteriores do P. simium na literatura científica.

Ainda que a análise microscópica fosse suficiente para determinar que os parasitos encontrados nas amostras eram do gênero Plasmodium, era necessário realizar laboratorialmente a confirmação da espécie. Para isso, foram aplicados testes de PCR convencional e em tempo real. Os primeiros testes realizados reconheceram no material o parasito P. vivax, mas se revelaram posteriormente incapazes de distinguir P. vivax do P. simium.

Coube ao Grupo de Biologia Molecular e Imunologia da Malária da Fiocruz-Minas, juntamente com o grupo do IOC, realizar o diagnóstico dos casos em primatas não humanos. Para alcançar um diagnóstico mais preciso, amostras de 33 pacientes foram submetidas ao sequenciamento do genoma mitocondrial do parasita – DNA encontrado em organelas celulares chamadas de mitocôndrias. Em três foi realizado o sequenciamento completo e em 30, o parcial. O passo seguinte foi comparar os resultados com 794 sequências de genoma mitocondrial de P. vivax e três sequências de P. simium depositados no banco de genomas internacional Genbank. Nessa etapa, realizada em parceria com a UFRJ, o Instituto de Medicina Tropical do Japão e a Universidade Nova de Lisboa, foram identificadas diferenças entre os genomas do P. vivax e do P. simium que poderiam servir como alvo para o diagnóstico diferencial entre esses dois parasitos, usando técnicas moleculares. “Por meio da comparação das amostras de primatas não humanos e humanos infectados na Mata Atlântica com as sequências de genomas mitocondriais de Plasmodium vivax de diferentes regiões do mundo, conseguimos identificar dois biomarcadores, garantindo se tratar do P. simium, o que significa que nesta região a doença se comporta como uma zoonose”, explica a pesquisadora da Fiocruz-Minas Cristiana Brito. As análises baseadas nessa nova abordagem revelaram sequências genéticas idênticas para P. simium em 28 das 33 amostras. Amostras de P. simium de três macacos coletados da Mata Atlântica do Rio de Janeiro, um em 2013 e dois em 2016, e uma obtida de um macaco de São Paulo nos anos 1960, também foram analisadas.

Confirmação de uma hipótese

A possibilidade de infecção humana pelo P. simium foi evocada há quase 50 anos por Leônidas Deane, um dos maiores parasitologistas que o país já teve. Entretanto, sem as ferramentas moleculares para distinguir entre esse parasito e o P. vivax não era possível afirmar que os casos registrados no Rio de Janeiro eram resultado desse tipo de infecção. “A descrição do P. simium foi feita em 1951 nas ‘Memórias do Instituto Oswaldo Cruz’ por Flavio da Fonseca, que identificou o parasito em um macaco de São Paulo. Na década de 1960, Leônidas Deane documentou o único caso suspeito de infecção humana por P. simium publicado anteriormente na literatura científica: um profissional que atuava na captura de mosquitos vetores da malária de macacos no Horto Florestal da Cantareira, em São Paulo, e contraiu a doença. A análise das características morfológicas do parasito aliada ao fato de não haver transmissão de malária humana na região apontavam para a hipótese”, explica Ricardo Lourenço, que foi discípulo de Deane e coordenador das capturas de mosquitos e macacos examinados no estudo.

Risco de disseminação

Os pesquisadores ponderam que, com os conhecimentos disponíveis hoje, não é possível determinar se o parasito adquiriu a capacidade de infecção de seres humanos recentemente ou se a malária zoonótica já infectava seres humanos no local antes da eliminação da doença na região. Segundo eles, para dimensionar a ameaça apresentada pelo P. simium será necessário aprofundar os estudos, com a análise de mais amostras de humanos, primatas e mosquitos para determinar a área de circulação do parasito. Também será preciso investigar se a transmissão do P. simium ocorre apenas a partir dos macacos ou se as pessoas doentes podem apresentar quantidade suficiente de parasitos no sangue que mosquitos sejam infectados durante a picada. “A partir da técnica de análise de material genético desenvolvida especialmente para o estudo, foi possível aprimorar o teste de PCR para detectar com precisão uma possível infecção por P. vivax ou P. simium. Vamos submeter outras amostras a este processo para verificar qual parasito tem provocado infecções no Rio e em outros estados cobertos por Mata Atlântica”, adianta Cláudio Ribeiro. A combinação de técnicas parasitológicas e moleculares e de investigação em campo com buscas por animais e mosquitos infectados é fundamental para elucidar a origem dos casos de malária diagnosticados no Rio de Janeiro.

Os aspectos clínicos da malária causada pelo P. simium também devem ser alvo de pesquisas. Segundo os cientistas, a avaliação destes casos, até o presente momento, sugere que o P. simium não seria capaz de formar hipnozoítos, formas latentes que não são eliminadas pelos medicamentos e permanecem ‘adormecidas’ no fígado por meses ou anos, podendo levar à reativação do agravo posteriormente. Para confirmar essa percepção, deve haver acompanhamento dos pacientes por mais tempo, bem como a realização de outros estudos em primatas não-humanos, que já se iniciaram.

Nas áreas onde a doença já foi identificada e quando houver a necessidade de adentrar em regiões de Mata Atlântica, os pesquisadores recomendam medidas de proteção individual, como o uso de repelentes e roupas que cubram a maior área do corpo, além da colocação de telas nas janelas e de mosquiteiros sobre as camas, com o objetivo de prevenir picadas durante a noite. Além disso, os especialistas ressaltam que os profissionais de saúde precisam estar atentos para realizar o diagnóstico dos casos mesmo nas áreas que não são endêmicas para a doença e oferecer o tratamento adequado aos pacientes. “A malária da Mata Atlântica costuma ter poucos sintomas e raramente é motivo de internação hospitalar. Os médicos devem ficar atentos à presença de síndrome febril e à história de deslocamento às localidades onde os casos foram registrados. Diante da falta de especificidade do quadro clínico, a história de deslocamento é o aspecto que deve orientar a investigação diagnóstica”, enfatiza Patrícia Brasil.

Malária no Brasil

Até a descoberta liderada pela Fiocruz, a doença podia ser causada no Brasil por três espécies de parasitos do gênero Plasmodium: P. vivax, P. falciparum e P. malariae. “A partir dos dados trazidos por esse estudo, é razoável supor que uma nova modalidade de transmissão, envolvendo macacos, mosquitos prevalentes na região e um parasito diferente do P. vivax encontrado na Amazônia está causando os casos nas regiões da Mata Atlântica do Rio de Janeiro e, possivelmente, em outros estados”, Cláudio sugere. Em 2015, o Brasil registrou 143 mil notificações da doença. Independentemente da espécie de parasito, a malária é transmitida pela picada de mosquitos infectados do gênero Anopheles. O principal sintoma é a febre. Além disso, os pacientes podem apresentar episódios de calafrios, dor de cabeça, dor no corpo e artralgia – dor nas articulações. O tratamento é feito com medicamentos antimaláricos que variam conforme a espécie de Plasmodium causadora da infecção.

Reportagem: Maíra Menezes e Vinicius Ferreira (IOC/Fiocruz) – Edição: Raquel Aguiar (IOC/Fiocruz)