Pesquisa avalia redes de enfrentamento à violência contra as mulheres em MG

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Avaliar a situação das redes de enfrentamento à violência contra as mulheres no estado de Minas Gerais, verificando de que forma se constituíram e como desenvolvem o seu trabalho. Esse foi o objetivo de um estudo realizado pelo grupo Violências, Gênero e Saúde da Fiocruz Minas, que analisou a atuação de 20 redes existentes em diferentes localidades do estado, incluindo Belo Horizonte, região metropolitana e municípios do interior. Os resultados da pesquisa foram divulgados durante um seminário virtual, realizado nos dias 26 e 27 de agosto.

As redes de enfrentamento à violência contra as mulheres começaram a ser constituídas no Brasil no início dos anos 2000, com a criação da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, em 2003, e a promulgação da Lei Maria da Penha, em 2006. A partir desses marcos, determinou-se a necessidade de oferecer um amplo atendimento às mulheres em situação de violência, incluindo ações e serviços especializados em diferentes áreas, como saúde, assistência social, jurídico, segurança pública, educação, entre outras. Até então, esse atendimento se restringia às delegacias e às casas abrigo. Assim, a proposta de uma atuação em rede parte de um entendimento de que os múltiplos serviços e instituições trabalhem de forma articulada e integrada, construindo um diálogo permanente, solidário e multidisciplinar para promover o enfrentamento eficaz dessa violência.

No estudo realizado pelo grupo da Fiocruz Minas, um dos pontos que chamaram a atenção é que, na maior parte dos municípios, nem todos os serviços destinados às mulheres em situação de violência são especializados. Em geral, na constituição das redes, foram aproveitados serviços e equipamentos já existentes nessas cidades, sinalizando para uma falta de investimento na conformação inicial das redes. Tal situação impacta na potencialidade do que poderia estar sendo produzido por meio dessa ação em rede.

“Quando o serviço é especializado, o profissional já tem um olhar mais sensível para as questões que envolvem a violência. A pesquisa mostrou que, às vezes, o município tem delegacia, mas não tem uma específica para a mulher. O mesmo se dá com os serviços jurídicos, de assistência social e vários outros. Isso produz algumas fragilidades para a potência que esse trabalho em rede poderia estar produzindo, pois deixa de haver um encaminhamento adequado para outros serviços a que a mulher tem direito e que são importantes para o enfretamento da violência sofrida”, explica a pesquisadora Paula Bevilacqua, coordenadora do estudo. “Além disso, a falta de orçamento específico para essa política pública nos municípios atrela sua execução à política de Assistência Social, fato que favorece o esvaziamento das normativas técnicas e políticas que delimitam a categoria “gênero” como ponto de partida para a compreensão das opressões sofridas pelas mulheres, principalmente aquelas em situação de violência”, destaca a pesquisadora.

Outro aspecto observado foi a ausência de uma leitura interseccional que possa favorecer uma compreensão ampla e diferenciada das diferentes condições sociais e pessoais em que a violência é produzida. No entanto, em vários momentos, verificaram-se tentativas, ainda que tímidas, das redes contemplarem indicadores como classe social, raça, geração, etnia, entre outros, para interpretar o fenômeno da violência. Para a equipe responsável pelo estudo, essa constatação é muito preocupante, já que não se pode aceitar que políticas públicas especializadas no enfrentamento da violência contra as mulheres ainda não contemplem, prioritariamente, a categoria raça como primordial na promoção de estratégias eficazes para a proteção das mulheres.

Uma tímida participação do setor saúde nas redes foi um dos fatores também verificados durante o estudo. Segundo o grupo de pesquisa, isso acontece porque a área de saúde tem uma forma de atuação bastante hierarquizada, diferente do que se espera que ocorra nas redes de enfrentamento à violência contra as mulheres, que tem várias portas de entrada para atender a múltiplas demandas.

“Constatamos um distanciamento do setor saúde, que compromete a intersetorialidade. Porque ainda que a área de saúde possa atuar de forma efetiva, se ela deixa de entrar nessa rede, o trabalho fica comprometido, pois a demanda pode não andar para as outras áreas para onde deveria caminhar”, avalia Bevilacqua.

Na maior parte das redes analisadas, verificou-se ainda a falta de institucionalização das redes, ou seja, a iniciativa e permanência de um trabalho articulado acaba dependendo mais de uma ação individual ou de um grupo reduzido de pessoas comprometidas com o enfrentamento da violência. Sem o compromisso e apoio da gestão pública, garantindo sua ‘oficialidade’ e regularidade, esse trabalho acaba não se efetivando de forma apropriada ou sendo descontinuado, porque as mudanças de gestões podem não ter compromisso com a garantia dos direitos das mulheres. Por outro lado, a institucionalização não pode excluir a sociedade civil e os movimentos de mulheres, grupos que oferecem fôlego e permanente condições de renovação e criatividade para o trabalho, compondo, assim, um conjunto de forças que atuam juntas e em diálogo permanente, com a participação e sob a gerência de diferentes governos.

Outro ponto que impacta na continuidade e qualidade dos atendimentos é a falta de servidores públicos com cargo efetivo atuando nos serviços que compõem as redes. “O funcionamento de uma rede envolve um trabalho de diálogo permanente, um trabalho de convencimento, para que todos os órgãos importantes no enfrentamento da violência continuem participando. Garantir essa continuidade, por meio de pessoas com essa função, é fundamental”, explica Bevilacqua.

Para a coordenadora da pesquisa, os resultados do estudo apontam para uma série de fragilidades e reforçam a necessidade de se investir no fortalecimento das redes. Uma das soluções pode ser a constituição de redes com configurações regionais. “Não é todo município que vai ter todos os serviços especializados, mas pode haver um diálogo regional. A violência é abrangente e requer um atendimento intersetorial”, ressalta.

Como foi feita a pesquisa- O estudo foi desenvolvido entre maio de 2019 e agosto de 2021. Devido à dimensão geográfica do estado de Minas Gerais e à pandemia de Covid-19 que impossibilitou os deslocamentos do grupo para localidades mais distantes da sede da Fiocruz Minas, a pesquisa foi realizada em dois níveis: um mais aprofundado, realizado com seis redes existentes na da capital e em municípios vizinhos; outro com menos profundidade, realizado a distância, com as redes de 14 cidades do interior do estado.

As redes situadas na capital e na região metropolitana passaram por uma análise em profundidade, com aplicação de questionários, entrevistas individuais com profissionais que atuam nos órgãos que fazem parte da rede, observação participante durante as reuniões mensais desses grupos e realização de grupos focais. Além de Belo Horizonte, participaram desse nível as redes de Betim, Contagem, Ribeirão das Neves, Lagoa Santa e Ibirité.

Já as redes dos outros 14 municípios passaram por uma avaliação que contou com aplicação de questionário em diferentes serviços que integram as redes (Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher – DEAM; Centros de Referência da Mulher – CRM; Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres – CMDM; Casa Abrigo; Centro de Referência Especializado de Assistência Social _- CREAS). Nos municípios que contavam com CRM, os seus coordenadores também foram entrevistados, já que esses centros de referência exercem um papel de coordenação dos serviços e são um ponto importante de conformação da rede. Esse nível contou com a participação dos seguintes municípios: Alfenas, Cataguases, Congonhas, Itabira, Itajubá, Juiz de Fora, Nova Serrana, Paracatu, Patos de Minas, Pirapora, Sabará, São Sebastião do Paraíso, Uberaba e Visconde do Rio Branco.