Garantir direito humano à água vai além da estrutura física, apontam pesquisas

A preocupação com a situação de cerca de 900 milhões de pessoas vivendo sem água limpa levou a Organização das Nações Unidas (ONU)  a declarar, em julho de 2010, o acesso à água e ao esgotamento sanitário direitos humanos essenciais. Na época, uma resolução apoiada por 122 países, entre eles o Brasil, elencava uma série de condições importantes para o cumprimento desse direito, destacando ser necessário ir além da infraestrutura. Essa necessidade está sendo confirmada por estudos da Fiocruz Minas publicados recentemente, que mostraram que as instalações sanitárias, embora fundamentais, não são suficientes para o cumprimento desses direitos. Os pesquisadores também destacam que o descumprimento desse direito gera a violação de outros direitos.

Um dos artigos publicados, intitulado Infrastructure is a necessary but insufficient condition to eliminate inequalities in access to water: Research of a rural Community intervention in Northeast Brazil [A infraestrutura é uma condição necessária, mas insuficiente para eliminar desigualdades no acesso à água: pesquisa de uma intervenção em comunidade rural no Nordeste do Brasil], avaliou as condições de acesso à água e as desigualdades geradas pela indisponibilidade do recurso hídrico, antes e depois da construção de um sistema de abastecimento de água na comunidade de Cristais, localizada em uma região semiárida no estado do Ceará. O estudo se baseou em três aspectos primordiais para mensurar se o direito humano à água vem sendo garantido: qualidade, acessibilidade física e disponibilidade da água.

Para avaliar, os pesquisadores coletaram dados sociodemográficos e formas de acesso à água em dois momentos: em maio de 2014, antes da implementação de instalações sanitárias –quando o acesso à água se dava por meio de fontes coletivas, como torneiras públicas, chafarizes e reservatórios particulares-;  e em maio e junho de 2015, cinco meses após a conclusão das obras, quando já era possível ter água dentro de casa.  Os pesquisadores avaliaram também a qualidade da água fornecida, por meio de testes para E. coli, bactéria cuja presença indica contaminação por fezes.  Os resultados mostraram que as obras de infraestrutura não foram suficientes para garantir o uso de água potável pela comunidade.

“A construção do sistema sanitário possibilitou que quase todos os entrevistados tivessem acesso à água encanada. Entretanto, 70% das famílias continuaram a fazer uso de outras fontes de água, especialmente a água de chuva, para beber e preparar alimentos. Isso acontece, provavelmente, devido à não aceitação da água clorada, fornecida pelo sistema de abastecimento de água, e ainda porque, para essas comunidades, a água de chuva é considerada de ótima qualidade”, explica o pesquisador Bernardo Aleixo, do Grupo de Políticas Públicas de Direitos Humanos. Embora a percepção das pessoas em relação à água de chuva seja positiva, o estudo mostrou que a bactéria E.coli foi detectada na maioria das amostras coletadas em reservatórios de águas pluviais.

No que se refere à disponibilidade, avaliada com base na variável “consumo per capita por dia” (Ipcd), a pesquisa apontou que, após as instalações sanitárias, o consumo aumentou significativamente. A maior parte das residências com gasto abaixo de 20 Ipcd migrou para acima de 50 Ipcd, saindo de uma situação de alto para baixo risco para a saúde, segundo padrões da Organização Mundial de Saúde (OMS).  Foi possível perceber ainda que entre os que usam menores volumes de água estão os domicílios que não contam com canalização interna, que possibilitam ter torneiras em pontos de demanda, como banheiro e cozinha.

Em relação à acessibilidade física, mensurada conforme o tempo gasto para a coleta de água, constatou-se que, após as obras sanitárias, os deslocamentos para ter acesso à água diminuíram. Entretanto, muitas famílias usam outras fontes de água, fazendo com que os deslocamentos ainda ocorram.

“Os resultados mostram que outras medidas são fundamentais para fornecimento de água de boa qualidade. Nesse caso específico, poderiam ser realizadas também ações educativas, mostrando a importância de tratar a água coletada em outras fontes e ainda desmistificando o uso de água clorada. Para garantir o direito de acesso à água de qualidade, os aspectos culturais de cada comunidade precisam ser considerados”, destaca Aleixo.

Outro artigo, de autoria de pesquisadores da Fiocruz Minas, avaliou o acesso ao saneamento em uma escola pública urbana, localizada na periferia de uma cidade no sul da Bahia. Intitulada Having a toilet is not enough: the limitations in fulfilling the human rights to water and sanitation in a municipal schoolin Bahia, Brazil [Ter um banheiro não é suficiente: limitações no cumprimento dos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário em uma escola municipal na Bahia], a pesquisa ouviu a comunidade escolar para verificar se as condições oferecidas estão em conformidade com a perspectiva dos direitos humanos.

Para fazer a análise, os pesquisadores frequentaram a escola entre outubro e dezembro de 2016, período em que observaram as rotinas dentro da instituição. Eles também realizaram quatro grupos focais, que contaram com a participação de 39 estudantes, além de entrevistas individuais com o diretor e o vice-diretor da escola.

Durante os relatos, os alunos declararam haver problemas relacionados a disponibilidade de banheiros, uma questão que afeta principalmente as meninas. Os estudantes também afirmaram que as instalações não são adequadas a pessoas com deficiência.

“O número de banheiros não é suficiente para a quantidade de alunos. Essa situação se agrava no caso das meninas, que mesmo sendo maioria, contam com a mesma quantidade de banheiros que os meninos. Algumas declararam que, durante o período menstrual, evitam usar o sanitário”, conta a pesquisadora Édila Coswosk, do Grupo de Políticas Públicas de Direitos Humanos.

A falta de privacidade é outro ponto apontado pelos estudantes como problemático. De acordo com os relatos, muitas portas estão estragadas e, com isso, os alunos se sentem inseguros ao usarem os sanitários. Outro aspecto bastante mencionado é que os banheiros ficam sujos com muita frequência, além de faltar papel higiênico e sabão para lavar as mãos.

“Essas situações fazem com que os alunos evitem ir aos banheiros, o que pode gerar problemas de saúde. Isso mostra que a garantia de acesso aos direitos humanos de acesso à água e ao esgotamento sanitário nas escolas é um problema complexo, que não se limita a disponibilizar o banheiro”, destaca Coswosk. Segundo a pesquisadora, é necessário tirar essa questão da invisibilidade e incluí-la nas práticas cotidianas, envolvendo os diferentes atores e interfaces.

“A gestão escolar precisa de apoio, através de políticas públicas e recursos, para criar e manter ambientes favoráveis à saúde. Além disso, faz-se necessário refletir e desenvolver trabalhos que busquem a mudança de atitudes que predispõem as pessoas a doença; e isso deve ser feito com o envolvimento de toda a comunidade escolar”, avalia.

A relação entre os direitos também é tema de pesquisas, sendo abordada no artigo Human rights’ interdependence and indivisibility: A glance over the human rights to water and sanitation  [Interdependência e indivisibilidade dos direitos humanos: um olhar sobre os direitos humanos à água e ao saneamento],em que os pesquisadores discutem os resultados de um estudo realizado em Belo Horizonte, tendo como foco a população em situação de rua. Por meio de uma análise qualitativa, verificou-se que, devido à precariedade no acesso à água e ao esgotamento sanitário, tal público acaba sendo excluído de outras esferas da vida social e econômica.

A pesquisa, realizada no período de maio a julho de 2016, envolveu observação não participante e entrevistas com 24 pessoas que vivem na região central de Belo Horizonte. Segundo a pesquisadora Priscila Neves, do Grupo de Políticas Públicas e Direitos Humanos, os entrevistados afirmaram que se sentem constrangidos por andarem sujos e, muitas vezes, deixam de ter acesso a serviços de saúde e de frequentar instituições de ensino porque não têm como tomar banho.

“Algumas pessoas contaram que, ao procurar serviços de saúde, são orientados a fazer uma higiene corporal e, só depois, procurar o atendimento, o que nem sempre é possível. Já os que frequentam a Educação de Jovens e Adultos (EJA) declararam faltar às aulas, quando não conseguem algum lugar para tomar banho. Analisando só essa situação, já é possível constatar que a violação do direito à água infringe outros dois direitos: à educação e à saúde”, analisa a pesquisadora.

Devido à violação do direito à água, também o direito à privacidade acaba sendo descumprido. Segundo a pesquisadora, grande parte da população em situação de rua tem que tomar banho nas fontes e praças públicas. Para as mulheres e população LGBT, a situação pode ser ainda mais complicada porque, além de terem a intimidade invadida, sofrem assédio e violência física e sexual.

Outro aspecto ressaltado pelos entrevistados é que, por estarem em situação de rua, com frequência têm seus pertences e documentos roubados ou tomados pela polícia, perdendo, com isso, o direito de exercer seus direitos civis e políticos.

“Se elas deixam de ter seus direitos políticos, como vão participar dos processos decisórios?”, questiona a pesquisadora. “O estudo reforça o que muitos outros autores vêm apontando: os direitos humanos devem ser abordados sob o ponto de vista da indivisibilidade e da interdependência, uma vez que o descumprimento de um impacta na violação de outro”, conclui.

Para o pesquisador Léo Heller, que também é relator especial da ONU para os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário, as pesquisas indicam “como populações que vivem em situação mais vulnerável são particularmente atingidas quando o Estado não cumpre seu papel de respeitar e promover os direitos humanos”.  Segundo Heller, o conjunto dos três artigos mostra ainda, de forma original, como a interdependência entre os direitos humanos se expressa nessas situações, fazendo com que desigualdades já existentes sejam acirradas.

Texto: Keila Maia

Fotografia: Banco Fiocruz de Imagens