René Guimarães Rachou

René Guimarães Rachou Fotografia In: Revista Brasileira de Malariologia e Doenças Tropicais Rio de Janeiro, vol. XVIII, n. 3-4, jul.-dez. de 1966, [s.p.]. Acervo da Biblioteca do IRR

“O Dr. Rachou deixou um vazio difícil de preencher no quadro de higienistas e pesquisadores continentais que trabalham para a saúde dos povos das Américas”.[1] Foi assim que a Organização Pan Americana da Saúde qualificou o falecimento prematuro do cientista René Guimarães Rachou, em um acidente de carro, no ano de 1963, aos 46 anos de idade, no cumprimento do dever como consultor da instituição, em El Salvador.

Hoje, esse cientista nomeia o Instituto René Rachou, que funciona em Belo Horizonte, ligado à Fundação Oswaldo Cruz.

René Guimarães Rachou nasceu em 30 de junho de 1917, na cidade de Taubaté, São Paulo. Filho de Bertha Rachou e João Rachou. O pai era médico bastante conhecido na localidade, querido por sua atuação profissional, e também muito popular como diretor esportivo do Taubaté Sport Club, que ajudou a fundar no ano de 1914.[2] O então menino René passou uma infância tranquila, tendo herdado do pai o gosto pelos esportes, atividade que o fascinou durante grande parte da juventude. Ele atuou em campeonatos juvenis de tênis pelo país, como integrante do clube Fluminense, e seu nome aparecia constantemente nos jornais da época como jogador ativo e promissor.[3]

Mais tarde, a formação como atleta ajuda-o a lidar com o desgaste físico causado pelo enorme volume de trabalho que enfrentaria como pesquisador. Também na escolha da profissão ele seguiu os passos do pai, formando-se em medicina no ano de 1939, pela Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro.  René Rachou tinha também um olhar para o elemento social, já que, além da formação médica, era graduado em Assistência Social pela Universidade do Brasil (1940). Atraído para a área da Saúde Pública, logo ingressou no Serviço de Profilaxia da Malária do Estado de São Paulo, de forma a especializar-se. Mas dotado de grande curiosidade acadêmica, nunca deixou de aprofundar seus estudos, tendo, no ano 1942, realizado o Curso de Malária do Departamento Nacional de Saúde, no Rio de Janeiro, terminando a formação como o primeiro da turma. O destaque acadêmico franqueou-lhe a entrada no Serviço Nacional de Malária, no ano de 1943, sendo, logo em seguida, designado para comandar o Laboratório Regional do Sul do país, mudando-se para Florianópolis.[4] Esse período da vida de René Rachou parece ter sido muito intenso, ali ele fez inúmeras amizades, e voltou a dedicar-se à prática esportiva do tênis, participando de competições no Lira Tenis Clube, de tal modo que jornais locais qualificavam-no como “figura de relevo nos meios científicos […] distinto médico, que também desfruta de invulgar simpatia nos nossos meios sociais e esportivos”.[5]

No tempo em que passou em Santa Catarina sua equipe constatou “serem as Kerteszias as grandes responsáveis pela malária no sul do Brasil, deu-se início à campanha profilática, visando-se, principalmente, os criadouros desses anofelinos, única maneira de se poder fazer um combate eficiente e definitivo”.[6] Os criadouros, no caso, eram encontrados principalmente na água acumulada nas folhas das bromélias, abundantes na região. Após um trabalho massivo para eliminar os elementos favoráveis do habitat, as taxas de transmissão da malária caíram cerca de 90% na cidade de Florianópolis. Mas esse manejo encontrava resistência entre alguns habitantes locais, contrários à eliminação da vegetação.[7] As técnicas empregadas pelos especialistas constituíam métodos experimentais no trabalho urgente de saneamento do país, de tal forma que os cientistas estavam sempre revisando seus pressupostos à luz de novos estudos. Nesse momento também estava em evidência o potencial do uso do DDT como inseticida capaz de eliminar diversos vetores transmissores de doenças, principalmente em ambientes fechados. Assim, buscavam-se meios de combinar a depuração do meio externo com medidas que fossem eficazes intra muros.

René Rachou passou a investigar a fundo o uso do DDT e produziu uma vasta bibliografia sobre o assunto. Em 1948 participou do IV Congresso Internacional de Medicina Tropical e Malária, ocorrido em Washington, nos EUA, como integrante da delegação brasileira. Ali, “o DDT mobilizou quase totalmente as atenções dos congressistas, que se dividiram em duas correntes: uma defendendo o ponto de vista de que se pode resolver o problema da “malária” com emprego exclusivo de DDT; outra, sem lhe negar o valor, considera-o falho quando empregado isoladamente”.[8] Tratava-se do assunto do momento no que diz respeito à erradicação da malária, e de outras doenças tropicais. Com o tempo, as pesquisas evidenciaram os limites desse novo instrumento de combate aos vetores transmissores de patologias, como a resistência de alguns mosquitos ao inseticida, além de fatores relacionados ao ambiente. Segundo Ernest Paulini, “permanecia sem resposta uma importante pergunta: o que fazer na Amazônia, onde os vetores da malária entravam e saíam livremente das choças evitando, assim, qualquer contato com os inseticidas depositados no sapé? Com este argumento, o dr. Rachou foi um dos poucos malariologistas que consideraram a erradicação da malária no Brasil ‘parcialmente’ viável”.[9]

De volta ao Rio de Janeiro, René Rachou foi designado chefe do Laboratório Central do Serviço Nacional de Malária (SNM) e logo em seguida diretor de Epidemiologia do órgão. Suas pesquisas sobre os inseticidas evidenciaram a necessidade de compreender melhor as questões entomológicas, de modo que ele organizou a Escola de Entomologia do SNM. Mas o seu espírito científico preconizava que ele mesmo deveria aprofundar-se nos estudos, de modo que realizou os cursos de Entomologia Geral (1950) e Hidrobiologia (1951) no Instituto Oswaldo Cruz. Como pesquisador experiente, René Rachou contava com a confiança de Mário Pinotti, diretor do SNM, e foi por ele designado como Coordenador da Campanha contra a Filariose (1952-1960). Mais tarde, essa expertise rendeu-lhe convite feito pela Organização Mundial de Saúde para integrar Comitê de Peritos sobre a Filariose.

Concomitantemente a todas essas atividades, o médico taubatense ajudou a fundar a Revista Brasileira de Malariologia, que a partir de 1949 tornou-se um veículo científico fundamental na difusão de pesquisas sobre a malária e outras doenças tropicais. René Rachou engajou-se também na formação de um contingente nacional de técnicos e médicos sanitaristas, ministrando cursos sobre “epidemiologia e profilaxia da malária e das filarioses, sistemática de anofelinos, inseticida-resistência, parasitologia”, promovendo um intenso diálogo entre os pares, por meio das várias instituições científicas das quais era membro, como a “Sociedade Brasileira de Higiene, Sociedade Brasileira de Entomologia, Associação Médica da Guanabara e de Minas Gerais, The Royal Society os Tropical Medicine and Hygiene, The American Society of Tropical Medicine and Hygiene, e de The American Society of Mosquito Control”.[10]

René Rachou inicia uma nova fase na sua carreira no ano de 1955, ao ser nomeado diretor do Instituto de Malariologia, recém transferido para a capital mineira. Logo em seguida, reformulações burocráticas transformam essa instituição no Centro de Pesquisas de Belo Horizonte, ligado ao Instituto Nacional de Endemias Rurais (INERu), que por sua vez integrava o Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERu), órgão criado em 1956, que incorporou atribuições do antigo SNM. René Rachou permanece à frente do Centro até 1957. Seu esforço, em fase tão decisiva de reestruturação da administração sanitária do país, rendeu-lhe homenagem de colegas que, em pesquisa realizada em Minas Gerais, descobriram uma nova espécie de flebótomo, nomeada, em 1957, como Phlebotomus renei, hoje conhecida como Lutzomyia renei, em homenagem a René Rachou.[11]

Após o bem sucedido trabalho de garantir a continuidade das pesquisas na nova sede, René Rachou iniciou outra fase na sua carreira, de feição internacional. Convidado pela Oficina Sanitária Pan-Americana no início da década de 1960, passou a percorrer países da América Central no intuito de desenvolver estudos epidemiológicos sobre doenças tropicais, em particular a malária.

Em novembro de 1963 ele encontrava-se em El Salvador, comandando um grupo de pesquisas, quando faleceu, em razão de um acidente. O grupo foi temporariamente dissolvido, tendo retomado as suas atividades em 1964, com a prioridade de publicar os resultados obtidos por René Rachou no curso de suas investigações. No ano de 1965 publica-se o artigo intitulado “Synoptic epidemiological studies of malaria in El Salvador”, na American Journal of Tropical Medicine and Hygiene. Segundo relatório da Organização Pan-Americana de Saúde, o “artigo é um exemplo do tipo de estudos de malariologia necessários para formar as bases de sofisticadas operações de erradicação da malária em áreas problemáticas”.[12] René Rachou deixou uma vasta produção acadêmica, consubstanciada em cerca de cento e cinquenta trabalhos científicos, que ajudaram a conformar o campo de pesquisa sobre a malária e outras doenças tropicais.

Tal posição de destaque angariou-lhe a nomeação, em sua honra, de outra espécie, a Ormia rachoui. O pesquisador Omar Tavares declarou, “Dedicamos esta espécie ao Dr. René Guimarães Rachou, do Departamento Nacional de Endemias Rurais”.[13] A morte prematura de René Rachou causou grande choque na comunidade científica, resultando em diversas homenagens póstumas e no reconhecimento do seu legado como médico, pesquisador e administrador sanitarista. Foi assim que por meio do Decreto n. 59.149, de 26 de agosto de 1966, determinou-se a alteração do nome do “Centro de Pesquisas de Belo Horizonte, do Instituto Nacional de Endemias Rurais, do Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERu), do Ministério da Saúde – para “Centro de Pesquisas René Rachou”.[14] Com a promulgação do decreto foi realizada cerimônia de oficialização do ato, em Belo Horizonte, no já intitulado Centro de Pesquisas René Rachou, com a presença de familiares, colegas e autoridades, como a do Ministro da Saúde, Raymundo de Britto. Segundo Manoel José Ferreira, diretor do DNERu, René Rachou tinha por lema a famosa divisa de Oswaldo Cruz, “Não esmorecer para não desmerecer”. Hoje, os legados desses dois cientistas, René Rachou e Oswaldo Cruz, estão amalgamados no Instituto de Pesquisas René Rachou – Fiocruz Minas.

 

Placa do decreto nº 59.149. Centro de Pesquisas René Rachou. Belo Horizonte. Acervo da Fundação Oswaldo Cruz – Casa de Oswaldo Cruz

 

 

Projeto Memória. Trajetória histórica e científica do Instituto René Rachou – Fiocruz Minas.

Coordenadores: Dr.ª Zélia Maria Profeta da Luz; Dr. Roberto Sena Rocha.

Historiadora: Dr.ª Natascha Stefania Carvalho De Ostos.

 

Texto de: Natascha Stefania Carvalho De Ostos – Doutora em História

 

[1] OPAS. Boletín de la Oficina Sanitaria Panamericana. Homenaje Postumo a René Guimarães Rachou. Feb. 62 (2), p.181.

[2] Correio Paulistano, São Paulo, n. 18.429, 06 nov. 1914, p. 6.

[3] Federação de tennis do Rio de Janeiro. Campeonatos Juvenis. Correio Paulistano, São Paulo, n. 24.105, 24 out. 1934, p. 8.

[4] FERREIRA, Manoel José. Centro de Pesquisas René Rachou. Revista Brasileira de Malariologia e Doenças Tropicais, vol. XVIII, n. 3-4, jul.-dez. de 1966, p. 393-396.

[5] Dr. René Rachou. O Estado, Florianópolis, ano XXXIII, n. 10.008, 23 abr. 1947.

[6] PINOTTI, Mario; RACHOU, René; FERREIRA, Mario O.. Alguns aspectos epidemiológicos da malária no litoral sul do Brasil, em zona de transmissão por anofelinos do sub-gênero Kerteszia. Revista Brasileira de Malariologia e Doenças Tropicais, Homenagem a René Rachou. Rio de Janeiro, p. 605-671, v. VIII, n. 3- 4, dez. 1966, p. 641.

[7] OLIVEIRA, Eveli Souza D’Avila. Combate à malária em Santa Catarina: políticas públicas, impactos ambientais e memória. Tese de doutorado em História. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, p.168, p. 238.

[8] Quarto Congresso Internacional de Medicina Tropical e Malária. Revista Brasileira de Malariologia, Serviço Nacional de Malária, Rio de Janeiro, v. I, n.1, jan. 1949, p. 62.

[9] PAULINI, Ernest. O passado revisitado: o Instituto de Malariologia e o Instituto de Endemias Rurais (INERu). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. 11(1): 143-58, jan.-abr. 2004.

[10] FERREIRA, Manoel José. Ibid, p. 394; 395.

[11] ANDRADE FILHO, José Dilermando; SHIMABUKURO, Paloma Helena Fernandes. Fiocruz. Coleção de Flebotomínios. Histórico. Disponível em: < http://colfleb.fiocruz.br/index?history>.

[12] OPAS. Research activities of PAHO in selected fields (1964-1965). Washington, 4/2B, april 1965, p.22-23. (original em inglês).

[13] TAVARES, Omar. Contribuição ao conhecimento da tribu Ormiini: I: gênero Ormia robineau-desvoidy 1830 (Diptera, Tachinidae). Mem. Inst. Oswaldo Cruz,  Rio de Janeiro,  v. 60, n. 3, p. 347-363,  set.  1962, p. 358.

[14] Centro de Pesquisas René Rachou. Revista Brasileira de Malariologia e Doenças Tropicais, vol. XVIII, n. 3-4, jul.-dez. de 1966, p. 389.