Giorgio Schreiber  

Giogio

Acervo particular de Laura Schreiber Campos Rocha, s./d..

 

         Na Europa do final da década de 1930 a comunidade judaica sofreu perseguição em muitos países. Na Itália,[1] Giorgio Schreiber foi atingido por medidas que impactaram sua vida social e profissional. Nascido em Trieste, 1905, formou-se em história natural na Universidade de Pádua, em 1927, obtendo o equivalente, à época, ao título de doutor em zoologia. Giorgio tinha um irmão gêmeo idêntico, Bruno Schreiber, também pesquisador na área de biologia, os dois eram cientistas e professores universitários. Giorgio foi docente na Universidade de Pádua entre 1927 e 1938, quando começaram as perseguições.[2] Demitido do trabalho, passou a dar aulas da Escola Judaica de Trieste,[3] até que se viu forçado a imigrar.

Ele e sua esposa, Maria Romano Schreiber, também graduada em história natural, tentaram imigrar para vários países, mas encontraram dificuldades, resolvendo tentar a vida no Brasil. A escolha do país deveu-se à sugestão de parentes e amigos, que uniram forças para conseguir o visto de entrada para o casal. Isso só foi possível após Giorgio Schreiber obter um certificado de técnico em zootecnia, pois o governo brasileiro exigia que os candidatos tivessem experiência em áreas de interesse do governo, como a pecuária. Segundo depoimento de Maria Romano, “Para Giorgio, o fato de ter que se dedicar a outro tipo de atividade era muito sofrido. Ele não queria se afastar do campo de pesquisa biológica e do ensino, pois já era conhecido na Itália como pesquisadorâ€.[4] Chegaram ao Brasil em 1940, estabelecendo-se em São Paulo, na fazenda Amália, da família Matarazzo, onde Schreiber dedicou-se a experimentos sobre a extração de álcool da laranja.[5] Até 1943, Giorgio, que também tinha um diploma de químico,[6] trabalhou no Laboratório Químico das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo. Nesse período, mesmo empregado em área diferente da sua formação, o pesquisador estabeleceu contatos com a comunidade científica brasileira, e em 1943 participou da Semana Genética, em Piracicaba, apresentando trabalho sobre genética fisiológica, tema que já estudava na Itália, tendo participado, em 1939, do VII Congresso Internacional de Genética em Edimburgo.[7]

Expandindo seus contatos com colegas pesquisadores, Schreiber conseguiu trabalho no Instituto Butantã, entre 1944 e 1948, “na Seção de Citologia, onde iniciou uma profícua linha de pesquisas compreendendo principalmente estudos cariométricos, em células de gonadas de ofídios e murinosâ€.[8] Nesse período também ministrou aulas na Escola Livre de Sociologia e Política, da Universidade de São Paulo.[9] A mudança para Belo Horizonte ocorreu, mais uma vez, por intermédio da comunidade italiana, nas pessoas de Luigi Bogliolo e Braz Pellegrino, professores da Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais. Pellegrino convidou Schreiber para ser docente no curso de História Natural na Faculdade de Filosofia. Sendo, à época, o único professor do curso com o equivalente a doutorado, passou a orientar os estudantes na prática de pesquisa, como José Pellegrino, filho de Braz Pellegrino, que viria a ser um grande pesquisador.[10] Schreiber ocupou essa posição entre 1948 e 1953, quando, por meio de concurso, assumiu a cátedra de Zoologia da Faculdade de Filosofia da UFMG, com a tese “Análise estatística da variação interfásica do volume nuclearâ€.[11] Segundo Léa Paixão, “Apesar da cátedra destinada a Schreiber ter sido a de Zoologia dos Vertebrados, sua atuação e sua competência científica faziam-no […] o grande biólogo do departamento interessado em pesquisa básicaâ€.[12]

Em 1953 foi nomeado delegado do Brasil na XI Assembleia Geral da União Internacional das Ciências Biológicas da UNESCO, em Nice, França. Na mesma viagem atuou como representante da Academia Brasileira de Ciências, no IV Congresso Internacional de Genética em Bellagio, Itália.[13] Entre 1950 e 1955 comandou o Laboratório de Citogenética do Instituto Agronômico do Estado de Minas Gerais, no que é hoje o Museu História Natural e Jardim Botânico da UFMG.[14]

Como era comum à época, Schreiber, além de professor da UFMG, era vinculado a outras instituições. Desde 1956 atuava no Centro de Pesquisas de Belo Horizonte (CPBH), posteriormente renomeado como Centro de Pesquisas René Rachou (CPqRR), vinculado ao Instituto Nacional de Endemias Rurais (INERu), atuando na área de genética, mais especificamente em citogenética de insetos,[15] tendo publicado trabalhos com outros pesquisadores da Instituição, como o químico Ernest Paulini, sobre resistência de inseticidas em drosophilas, além de cariotipagem de vetores de doenças e citogenética dos barbeiros.[16] Os laboratórios do INERu foram fundamentais para o desenvolvimento das pesquisas de Schreiber em Belo Horizonte, em um período em que faltava estrutura de pesquisa nos departamentos da Universidade de Minas Gerais.[17] O cientista permaneceu na Instituição até 1961, quando, discordando de mudanças burocráticas implementadas, pediu demissão.[18]

Na UFMG ele foi chefe do Departamento de Biologia Geral. Em 1968 tornou-se professor titular de evolução, e em 1975 professor emérito da universidade.[19] Foi membro titular da Academia Brasileira de Ciências, da Sociedade Brasileira de Genética, da Academia de Ciências de Nova York e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), sendo secretário regional de Minas Gerais dessa Instituição.[20] No ano de 1971 a SBPC homenageou o cientista em sua reunião anual.[21] Em 1972, ele recebeu o Prêmio Nacional de Genética.[22] Segundo o Jornal do Brasil, ele “participou “do Planejamento da Universidade de Brasília. Foi consultor da Organização Mundial de Saúde, que lhe conferiu, em 1975, o título de Cientista do Anoâ€.[23]

Suas pesquisas versaram sobre fisiologia comparada de invertebrados e vertebrados, morfologia experimental, citogenética e citologia quantitativa.[24] Foi responsável pelos primeiros estudos de diversidade genética em espécies de Minas Gerais, estudando “variações de morfologia cromossômica através de ferramentas da Citogenética (citofotometria). Estes primeiros estudos citogenéticos visavam a descrição dos cariótipos de algumas espécies nativas do Brasil, muitas de interesse em medicinaâ€.[25] Schreiber era consciente da necessidade de especialização e profissionalização da ciência no Brasil, em entrevista, no ano de 1955, ele afirmou: “O ensino de Zoologia está começando a tomar impulso definitivo. Não devemos esquecer que as Faculdades de Filosofias nossas são todas jovens. Nota-se maior formação médica do que naturalista […]. As ajudas, dentro das suas possibilidades, do Instituto Nacional de Pesquisa, e da CAPES, vem sendo decisivas para o desenvolvimento da ciência no Brasilâ€.[26] Ao longo da sua carreira ele recebeu financiamento do Fundo de Pesquisas da USP, Fundação Rockefeller, Conselho Nacional de Pesquisa e CAPES.[27]

Segundo Laura Schreiber Campos Rocha, filha do cientista, ele gostava muito de ensinar, sendo uma pessoa sociável e agregadora. Desenhista talentoso, ilustrava suas aulas com belos desenhos no quadro negro. Colegas e alunos brincavam que o pesquisador anunciava sua presença pelo inconfundível odor do fumo de cachimbo, que sempre portava.[28] Falecido em 1977, Giorgio Schreiber publicou mais de 225 trabalhos acadêmicos. Em reconhecimento ao seu legado, seu nome foi atribuído a uma rua do Campus Pampulha, da UFMG,[29] assim como a uma rua da cidade de Belo Horizonte. O professor ensinou uma geração de estudantes e trouxe para o Brasil sua expertise e prática de pesquisa, sendo um dos nomes mais importantes na história da genética no país.

 

 

Projeto Memória. Trajetória histórica e científica do Instituto René Rachou – Fiocruz Minas.

Coordenadores: Dr. Roberto Sena Rocha.

Texto da historiadora: Natascha Stefania Carvalho De Ostos.

 

A Fiocruz Minas agradece a Laura Schreiber Campos Rocha pela sua generosa colaboração com o Projeto Memória.

 

 

[1] Sobre as chamadas “leis raciais†na Itália, ver: GIARDINA, Andrea. O mito fascista da romanidade. Estudos Avançados, n. 22, vol. 62, 2008.

[2] MAINARDI, Danilo. Necrologi. Giorgio Schreiber (1905-1977). Italian Journal of Zoology, 44:4, 428-429, 1977.

[3] ROCHA, Laura Schreiber Campos. Apontamentos sobre Giorgio Schreiber, 2022. [Conversa preliminar com Natascha Stefania Carvalho De Ostos]. Belo Horizonte, 8 mar. 2022.

[4] BIGAZZI, Anna Rosa. “In Difesa Della Razzaâ€. Os judeus italianos refugiados do fascismo e o anti-semitismo do governo Vargas, 1938-1945, vol. 1. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo, 2007, p. 245-247. Contém transcrição de entrevista de Maria Romano Schreiber, concedida a Maria Tucci Carneiro em Belo Horizonte, 26 mar. 1985 e 08 dez. 1989.

[5] ROCHA, Laura Schreiber Campos. Apontamentos sobre Giorgio Schreiber, 2022. Ibidem.

[6] Idem.

[7] OLIVEIRA, Miguel Ernesto. A institucionalização do primeiro Centro de Pesquisa de Genética do Rio de Janeiro (1943-1968): o campo da genética e seus atores sociais. Tese de doutorado. Fiocruz, Casa de Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, 2015, p. 102, p. 106; SCHREIBER, Giorgio. O problema da metamorfose dos anfíbios nos seus aspectos genéticos. Anais da Academia Brasileira de Ciências, n. 1, tomo XIV, 30 set. 1942, p.235.

[8] Serviço de genética – Instituto Butantã. Suplemento Literário, n. 57, 24 jan. 1976, p. 4.

[9] SCHREIBER, Giorgio; SALVATORE, Carlos. Pesquisas cariometricas no ciclo estral e gravidico. Mem. Inst. Butantan, n.20(?), dez. 1947, p. 39; BIGAZZI, Anna Rosa. “In Difesa Della Razzaâ€, ibidem, p. 252.

[10] BIGAZZI, Anna Rosa. “In Difesa Della Razzaâ€, ibidem, p. 252; UFMG. Histórico da nomeação das ruas do Campus Pampulha. Disponível em: <https://www.ufmg.br/80anos/campus.html>.

[11] Ciência e Cultura, vol. 6, n. 2, jun. 1954, p. 96.

[12] PAIXÃO, Léa Pinheiro. Cátedra e Hegemonia da Prática Docente na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. R. bras. Est. pedag., vol. 76, n. 182/183, jan./ago. 1995, p. 221.

[13] Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, n. 266, 16 ago. 1953, p. 8; Ciência e Cultura, vol. 6, n. 1, mar. 1954, p. 47.

[14]UFMG. História do MHNJB. Disponível em: <https://www.ufmg.br/mhnjb/institucional/historico/historia-do-mhnjb/>; ROCHA, Laura Schreiber Campos. Apontamentos sobre Giorgio Schreiber, 2022. Ibidem.

[15] BRASIL; CAPES. Instituições de pesquisa (básica e aplicada). Série informação – 5, 1957, p. 96; SIMÕES, Luiz Carlos Gomes. Traços de Schreiber. Ciência e Cultura, vol. 29, n. 3, mar.. 1977, p. 358.

[16] SCHREIBER, Giorgio; CARVALHO, H. C; PAULINI, E.. Preliminary Report on Research towards the Development of a Standard Test for Insecticide-Resistance and Susceptibility in Drosophila. Bull World Health Organ, 24(4-5), 1961, p. 664–668; CARVALHO, Humberto Coelho de. Professor Giorgio Schreiber – 50 anos de atividades de ensino e pesquisa. Ciência e Cultura, vol. 27, n. 2, fev. 1975, p. 123.

[17] PAIXÃO, Léa Pinheiro. Cátedra e Hegemonia da Prática Docente […], ibidem, p. 222.

[18] SIMÕES, Luiz Carlos Gomes. Traços de Schreiber. Ibidem, p. 359.

[19] UFMG. Histórico da nomeação das ruas do Campus Pampulha. Ibidem; UFMG. ICB. Professores Eméritos. Disponível em: <https://www.icb.ufmg.br/institucional/historico/professores-emeritos>.

[20] ARAÚJO, Ana Rita. Trajetórias que se cruzam.  Boletim UFMG. Disponível em:

<https://www.ufmg.br/boletim/bolsbpc2016/3.shtml>.

[21] ROCHA, Laura Schreiber Campos. Apontamentos sobre Giorgio Schreiber, 2022. Ibidem.

[22] CARVALHO, Humberto Coelho de. Professor Giorgio Schreiber. Ibidem, p. 124.

[23] Falecimentos. Jornal do Brasil, n. 267, 02 jan. 1977, p. 36.

[24] SCHREIBER, Giorgio. Enciclopedia on line Istituto Treccani. Disponível em:

<https://www.treccani.it/enciclopedia/giorgio-schreiber/>.

[25] DRUMMOND, Gláucia Moreira et al.. Biota Minas: diagnóstico do conhecimento sobre a biodiversidade no Estado de Minas Gerais – subsídio ao Programa Biota Minas. Belo Horizonte: Fundação Biodiversitas, 2009, p. 391.

[26] Diário de Pernambuco, Recife, n. 168, 27 jul. 1955, p. 1.

[27] Anais da Academia Brasileira de Ciências, vol. 38, n. 1, 31 mar. 1966, p. 137; GOMES, Ana Carolina Vimieiro. Os â€modos de conhecer†e fazer ciência do Instituto de Ciências Biológicas. In: GOMES, Ana Carolina Vimieiro; MARQUES, Rita de Cássia (orgs.). A ciência no ICB UFMG. 50 anos de História. Belo Horizonte: Fino Traço, 2021, p. 154.

[28] ROCHA, Laura Schreiber Campos. Apontamentos sobre Giorgio Schreiber, 2022. Ibidem.

[29] UFMG. Ruas do campus. Disponível em: <https://www.ufmg.br/80anos/campus.html>.