Mostra de Ciências: objetos científicos museais e sua compreensão pelo público

 

Durante a 19ª Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT), que ocorreu em várias cidades do Brasil entre os dias 17 e 21 de outubro de 2022, o Instituto René Rachou (IRR) – Fiocruz Minas, em parceria com outras instituições de ensino e pesquisa, esteve presente no Centro de Referência das Juventudes (CRJ), em Belo Horizonte, com programação voltada para o público escolar da Rede Pública de Ensino. Com o tema “Bicentenário da Independência: 200 anos de Ciência, Tecnologia e Inovação no Brasil”, o evento promoveu reflexões sobre o desenvolvimento das ciências e seus impactos na soberania do país.

O IRR desenvolveu diversas atividades, como exposições, mostras, oficinas, jogos e experimentos que contemplaram diferentes disciplinas. Dentro do quadro de programação, o Projeto Memória: trajetória histórica e científica do Instituto René Rachou, teve participação com a exposição Fazer Ciência: A contribuição dos instrumentos científicos no desenvolvimento das ciências. A iniciativa foi pensada a partir de diálogo promovido pelo grupo organizador da 19ª SNCT, criado no IRR com participação de pesquisadores, estudantes e funcionários. A mostra foi montada com objetos científicos do acervo museológico. O objetivo era trabalhar a forma como os instrumentos científicos acompanharam o desenvolvimento da ciência, com destaque para a trajetória histórica da Instituição ao longo dos seus 67 anos de existência.

A exposição foi apresentada ao público seguindo determinado trajeto. Inicialmente, os discentes foram recebidos em frente ao painel dos 200 anos de História da Ciência no Brasil (Figura 1), com explicação sobre os marcos históricos. Em seguida, os estudantes foram encaminhados para os nichos montados por diferentes grupos de pesquisas, onde participaram de oficinas e observaram experimentos. Logo, os alunos seguiram espontaneamente para a exposição Fazer Ciência, alocada em espaço aberto, em frente as salas com experimentos e o teatro de arena (Figuras 2-3).

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Figura 1: Painel com os principais marcos históricos em 200 anos de História da Ciência no Brasil.

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Figura 2: Exposição Fazer Ciência no CRJ, Belo Horizonte. Mostra de objetos científicos dispostos sobre uma mesa. Ao fundo cartaz do Projeto Memória do IRR.

 

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Figura 3: Alunos do Ensino Médio observando os objetos científicos expostos.

 

 

A exposição Fazer Ciência foi o primeiro evento externo com mostra de objetos científicos musealizados realizado pelo Projeto Memória. Iniciado em 2019, o projeto tem por objetivo de investigar, organizar e divulgar as memórias e a história da instituição. Liderado pelo pesquisador Roberto Sena Rocha, conta com uma museóloga e uma historiadora. No acervo museológico já foram realizados procedimentos técnicos de identificação e documentação dos objetos, etapa necessária para proceder à extroversão e divulgação das coleções. Atualmente, o acervo técnico-científico soma mais de 1.300 objetos, como microscópios, lupas, balanças, estufas, termo-higrômetros, contadores de células, vidrarias, reagentes, entre outros itens de uso em laboratórios de pesquisa. São instrumentos que auxiliaram nos experimentos e viabilizaram a produção científica dentro do IRR, formando um potente acervo.

Tendo em vista os objetivos de divulgação das coleções e de promoção do diálogo com a sociedade, o projeto materializou sua participação no 19º SNCT, expondo para o público escolar oito objetos científicos: (1) microscópio monocular de bancada fabricado para observação, produção e projeção de fotomicrografias; (2) microscópio monocular de campo, com cápsula de proteção; (3) lupa binocular com desenho industrial; (4) colorímetro; (5) esterilizador a vapor, para reutilização de seringas e agulhas; (6) balança analítica de dois pratos com campânula de vidro; (7) balança com reservatório para pesagem de cobaias; e (8) contador de colônias, para a quantificação de colônias (Quadro 1).

 

Quadro 1: Objetos expostos na mostra Fazer Ciência, com as informações contidas nas legendas.

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Os objetos expostos chamaram a atenção dos visitantes que, cheios de curiosidade, perguntaram sobre seu funcionamento e utilidade. Vários estudantes, principalmente da faixa etária entre 12 e 18 anos, paravam em frente à mesa, inclinavam-se em direção às legendas e depois se dirigiam uns para os outros com comentários sobre data de fabricação, singularidades no formato das peças, comparações com os microscópios atuais e a surpresa com a precisão de algumas balanças a ponto de usarem uma campânula para evitar a interferência do vento. Eles espontaneamente faziam suas análises e interpretações sobre os instrumentos, e quando julgavam pertinente buscavam respostas para as suas inquietações, como: Por que se precisa de um microscópio no campo? Como se faz para crescer as colônias bacterianas? Como se mede a cor?

No entanto, a interação dos estudantes com a exposição ultrapassou a dimensão do próprio objeto. Eles ganharam novos sentidos sob o olhar do público, que a partir de impressões e experiências pessoais ressignificaram os instrumentos, atribuindo-lhes novos nomes e funções. Os objetos que mais causaram impacto, por serem aqueles que os alunos encontraram referências na própria realidade, foram: a Balança de animal, usada para a pesagem de animais em laboratório, possuindo um reservatório de metal perfurado e com tampa, que foi associada a uma pipoqueira; o Esterilizador a vapor, usado para a esterilização de pequenos utensílios de laboratório, comparada a uma sanduicheira; e o Contador de Colônia, formado por uma caixa com lente de aumento na frente, correlacionada pelos alunos à lupa usada por manicures para retirar cutícula (Figuras 4-6).

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Figura 4: Imagem da Balança de animal ressignificada como pipoqueira.

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Figura 5: Imagem do Esterilizador a vapor ressignificado como sanduicheira.

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Figura 6: Imagem do Contador de colônia ressignificado como lupa de manicure.

 

As reações dos estudantes em relação aos objetos permitem algumas análises, como o fator curiosidade, primordial no processo de ensino-aprendizagem. Como abordado por Paulo Freire, em Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa (1996, 2002), o discente possui capacidade crítica, curiosidade e insubmissão, cabendo ao educador respeitar o seu potencial criador. Assim, observa-se que os estudantes, ao buscarem suas próprias interpretações sobre os instrumentos científicos, estão interagindo no mundo pelo senso comum, pela “pura experiência”. Essa curiosidade ingênua ou espontânea é superada quando se estimula o pensamento crítico. Paulo Freire sustenta que o docente ou mediador não deve desprezar o valor das emoções, da sensibilidade, afetividade e intuição. É preciso respeitar a “leitura do mundo” que o estudante carrega consigo, para transformar o olhar ingênuo em um olhar crítico sobre a realidade. Os estudantes que visitaram a exposição Fazer Ciência estabeleceram relações entre sujeito-objeto-realidade, remetendo a seu contexto de vida. Ao observarem os objetos, eles buscaram uma interpretação coerente do que estava sendo visualizado, por meio de um pensamento livre e não-linear, de modo que informações pré-existentes deram sentido àquilo que se revelava como novo.

Como instrumento de ensino-aprendizagem, a exposição possibilitou a aproximação com as disciplinas de História, Biologia, Física, além de dialogar com a concepção de Patrimônio Cultural, permitindo ao mediador conectar diversos saberes naquela atividade educativa não formal. Assim, como lembra Morin (2005), é preciso reconhecer que o conhecimento científico não é somente uma produção intelectual, mas também cultural e social. Segundo a UNESCO (2005), um ensino de ciências suficiente e de qualidade desperta vocações no cidadão, gera realização no ser humano e integração social. Para além do foco no conteúdo, deve incentivar a autonomia e a formação da cidadãos conscientes da importância da ciência em suas vidas e no seu cotidiano.

No caso das instituições de pesquisa, locais de produção de conhecimento, há um movimento crescente para a democratização das ciências, com a promoção de atividades voltadas para o grande público. Tem-se observado uma grande variedade de ações, como palestras, textos de divulgação científica, exposições, produção de jogos interativos, criação de espaços na Web, etc. O Instituto René Rachou também busca contribuir para o fortalecimento da cultura científica na sociedade brasileira. No caso do Projeto Memória são realizadas ações de divulgação de memórias e da história da instituição, dos seus pesquisadores e demais funcionários. Além disso, são produzidos textos com a temática Coleção de Objetos da Ciência no Instituto René Rachou, disponíveis no site da instituição (https://www.cpqrr.fiocruz.br/pg/historia/).

É inquestionável que o acervo museológico da Fiocruz Minas possui enorme potencial para a organização de atividades culturais, didáticas e pedagógicas voltadas para o público em geral. Os objetos científicos museais operam como fonte de informação, podendo ser usados para o desenvolvimento de pesquisas históricas relacionadas a práxis científica, como ficou evidente com o sucesso da exposição Fazer Ciência. A iniciativa contribuiu para uma abordagem contextualizada da produção do conhecimento científico, dando forma a pensamentos abstratos e agregando ao ensino de ciências aspectos técnicos, históricos, sociais e culturais.

 

Projeto Memória. Trajetória histórica e científica do Instituto René Rachou – Fiocruz Minas.

Coordenador: Roberto Sena Rocha.

Texto: Luana Pirajá Ferraz – Museóloga

 

 

 

Referências bibliográficas

 

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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. (Coleção Leitura).

 

GURGEL, Ivã; PIETROCOLA, Maurício. Uma discussão epistemológica sobre a imaginação científica: a construção do conhecimento através da visão de Albert Einstein. Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 33, n. 1, 1602, 2011. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rbef/a/z8gHPnzcWCVftczLddPW6cJ/abstract/?lang=pt>.

 

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MORIN, Edgar. Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2007.

 

MONTEIRO, Lilian. Estímulo à curiosidade e envolvimento com a pesquisa científica. Estado de Minas, Belo Horizonte, publicado em 29/07/2019. (Educação). Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/especiais/educacao/2019/07/29/internas_educacao,1073208/envolvimento-com-pesquisa.shtml>.

 

ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO. Ensino de ciências: o futuro em risco. UNESCO, 2005. Disponível em:

<http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001399/139948por.pdf>.

 

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SANTOS, Lucas Oliveira dos; MÜLLER, Karen Barbosa. Caracterização do atual cenário da divulgação científica brasileira em mídias digitais a partir do levantamento dos perfis de divulgadores científicos. Journal of Science Communication – América Latina, v. 5, n. 2, AO1, 2022. Disponível em: <https://jcomal.sissa.it/pt-br/05/02/JCOMAL_0502_2022_A01>.