Naftale Katz

Naftale Katz – Fotografia: Academia Mineira de Medicina

O historiador Carlo Ginzburg, em uma de suas obras mais conhecidas, Mitos, Emblemas, Sinais,[1] traça os princípios do que ele define como paradigma indiciário, método de conhecimento que se orienta pela busca de pistas, indícios, sintomas e sinais. Segundo o estudioso, na história mais recente esses procedimentos podem ser encontrados no trabalho de Freud, em sua busca por sintomas, nas obras do historiador da arte Giovanni Morelli, que investigava os signos pictóricos, e do escritor Conan Doyle, criador do detetive Sherlock Holmes, famoso por solucionar casos por meio de indícios. Ginzburg indaga, “Como se explica essa tripla analogia? A resposta […] é simples. Freud era médico; Morelli formou-se em medicina; Conan Doyle havia sido médico antes de dedicar-se à literatura. Nos três casos, entrevê-se o modelo da semiótica médica: a disciplina que permite diagnosticar as doenças inacessíveis à observação direta na base de sintomas superficiais, às vezes irrelevantes aos olhos do leigo”.[2]

Tais considerações se ajustam de modo peculiar à trajetória do médico belo-horizontino, Naftale Katz. Ele narra que, na juventude, passou por um dilema na escolha da profissão: deveria ser médico, arqueólogo ou detetive? Apesar do seu interesse pela história e do seu fascínio pelo personagem Sherlock Holmes, ao fim decidiu-se pela medicina, pois percebeu que as três áreas “aparentemente diferentes, eram semelhantes”, tendo como pano de fundo o desejo pela investigação e um tipo de “raciocínio de descoberta”.[3] Portanto, desde cedo o cientista pode ser apontado como alguém sensível aos princípios de um conhecimento indiciário; ele foi capaz de reconhecer na prática médica um campo de observação, onde alguém atento às minúcias e apto a fazer conjecturas, poderia solucionar os seus próprios “casos”.

Foi assim que Naftale Katz, nascido em 1940, filho de judeus poloneses que imigraram para o Brasil, iniciou a graduação na Faculdade de Medicina da UFMG, em 1959. Como estudante ele se aprofundou nos estudos de anatomia patológica e clínica médica, com ênfase na esquistossomose, interesse que se solidificou ao conhecer o grande pesquisador da área, José Pellegrino. Impressionado com o número de casos da doença que chegavam para atendimento no Hospital das Clínicas ele concluiu que a “esquistossomose é importante para o Brasil, então vou estudar”.[4] Essa visão permitiu que ele articulasse, ainda como estudante, a criação de um local para receber os pacientes, o Ambulatório de Esquistossomose, localizado no Hospital da Cruz Vermelha, que à época estava ligado a Faculdade de Medicina.

Ao fim da graduação, por intermédio do professor José Pellegrino – a quem Katz atribui o título de “pai científico” –, ele foi contratado para trabalhar no então Centro de Pesquisas de Belo Horizonte, em 1965.[5] No local, atual Instituto René Rachou, o cientista começou a liderar pesquisas sobre terapêutica clínica, em parceria com Pellegrino, que cuidava dos aspectos experimentais. Paralelamente a essas atividades, trabalhou na junta médica da Polícia Militar, onde também realizou ensaios clínicos. Por muitos anos praticou clínica médica a serviço da Prefeitura de Belo Horizonte, atendendo pacientes acometidos de parasitoses. Em 1968 participou de pesquisa de campo na cidade de Baldim (MG), liderando ensaio clínico e de controle da esquistossomose na região. Naftale narra como eram difíceis as condições de pesquisa nas décadas de 1960 e 1970, já que a instituição não possuía orçamento próprio, e o financiamento era irregular. Além disso, no período em que o Centro de Pesquisas René Rachou era subordinado ao INERu (Instituto Nacional de Endemias Rurais), existia certa pressão para que os projetos desenvolvidos tivessem um cunho prático, de combate direto e imediato às endemias, o que limitava a liberdade da ciência experimental. De acordo com o médico mineiro, foi com a incorporação do Centro à Fiocruz, a partir de 1970, que essa situação começou mudar, e a pesquisa pôde evoluir. Finalmente, com o início da abertura política do país, e com a Fiocruz sob a administração de Sérgio Arouca (1985-1989), ocorreu um processo de democratização interna da instituição, que passou a incluir suas unidades na tomada das decisões.[6]

Naftale Katz participou diretamente da realidade administrativa da Instituição, por ter sido diretor da Fiocruz Minas entre 1971 e 1972, e entre 1985 e 1997. Seu primeiro mandato foi curto em razão de, segundo o pesquisador, ter sofrido pressão por parte de superiores, na época da ditadura militar, para elaborar lista de funcionários com suspeita de serem comunistas ou de esquerda. Tendo negado a ordem, Katz foi “convidado” a pedir demissão da chefia. Apesar de não ter filiação partidária, quando estudante ele participou, juntamente com outros colegas, de breve ocupação da Faculdade de Medicina, em defesa da Campanha da Legalidade, promovida por Leonel Brizola em prol da posse de João Goulart como presidente do Brasil. Com o golpe militar de 1964 ele testemunhou a repressão a colegas e professores, e seu irmão, envolvido em atividades políticas de esquerda, foi perseguido e preso.[7] Já no seu segundo período como diretor do Instituto René Rachou o ambiente era mais promissor, coincidindo com o fim do regime militar. Ele foi eleito e reeleito duas vezes para o cargo. Ao longo de doze anos no comando da Fiocruz Minas, Naftale Katz investiu na informatização da Instituição, ampliou sua estrutura física (com a construção de anexos), implantou a avaliação anual dos pesquisadores, aumentou o número de laboratórios, criou o Ambulatório de referência em Leishmanioses, dentre outras iniciativas.[8]

Mas, acima de tudo, Katz construiu uma carreira de sucesso como cientista. Ele criou o método Kato-Katz de diagnóstico de esquistossomose, uma forma de análise quantitativa que pode ser utilizada em campo, mantendo a precisão e facilitando o diagnóstico. Esse método foi adotado em todo o mundo por recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS). Ele também atuou em investigações no “desenvolvimento de um antígeno, o Sm 14, considerado pela WHO como potencial vacina para esquistossomose e fasciolose”.[9] Participou de diversos ensaios clínicos com drogas experimentais para o tratamento da esquistossomose. Em razão de sua expertise foi alçado à condição de perito da OMS, tendo viajado para muitos países a serviço da organização. Foi também um dos fundadores, e primeiro coordenador, do Programa Integrado de Esquistossomose (PIDE), grupo de pesquisa que reúne, desde 1986, os cientistas da Fiocruz que estudam a doença. No Instituto René Rachou foi chefe do Laboratório de Esquistossomose entre os anos de 1968 e 1994. Coordenou o Inquérito Nacional de Prevalência da Esquistossomose mansoni e Geo-helmintoses, editado em 2018. Publicou mais de 200 artigos científicos e orientou diversos estudantes. Suas pesquisas foram fundamentais para o maior conhecimento da esquistossomose e para melhoria do diagnóstico e tratamento da doença, ajudando “milhões de seres humanos espalhados pelos quatro cantos do planeta”.[10]

Sua reputação como cientista e administrador resultou na sua indicação para o cargo de Diretor Científico da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig), entre 1999 e 2003, tendo incentivado a organização e o registro de patentes, e apoiado a criação, em 2001, da Rede Genoma de Minas Gerais. “Desde sua fundação, a Rede desenvolveu projetos de geração de etiquetas de sequência de expressão em esquistossomose, realizou a transcrição de genes e a exploração dos genomas de fungos patógenos de plantas e investiu no sequenciamento das bactérias”.[11] Por trabalhar em tantos projetos científicos de ponta, Naftale Katz sempre teve uma preocupação especial com a ética na pesquisa, de modo que integrou a primeira equipe de profissionais do Comitê de Ética em Pesquisa da Fiocruz Minas, criado em 1999, sendo, posteriormente, por muitos anos, seu coordenador.

Como fruto de sua importante trajetória científica Naftale Katz recebeu homenagens de várias instituições, “o reconhecimento […] da Escuela Latinoamericana de Medicina e o Certificado de Mérito pelo Centro de Memórias da Medicina de Minas Gerais/UFMG, ambos em 2009; como também a Medalha Pirajá da Silva – Centenário da Descoberta do Schistosoma mansoni pelo Ministério da Saúde (2008) e a Comenda da Paz, Chico Xavier pelo Governo do Estado de Minas Gerais (2005), dentre outros”.[12] No ano de 2011 a Fiocruz concedeu-lhe o título de Pesquisador Emérito. O cientista integrou diversas sociedades de pesquisa, tendo sido presidente das Sociedades Brasileira de Parasitologia e de Medicina Tropical, e membro da Academia Mineira de Medicina.

Katz, homem de energia inesgotável, mesmo reconhecido internacionalmente e com carreira consolidada, nunca perdeu a curiosidade, motor criativo dos grandes cientistas. “Ninguém aprende o ofício de conhecedor ou de diagnosticador limitando-se a por em prática regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo […] elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição”.[13] Foi a inteligência aguçada, em sintonia com os desafios de cada tempo, que conferiu a Naftale Katz a marca da inovação.

 

 

 

Projeto Memória. Trajetória histórica e científica do Instituto René Rachou – Fiocruz Minas.

Coordenadores: Dr.ª Zélia Maria Profeta da Luz; Dr. Roberto Sena Rocha.

Historiadora: Dr.ª Natascha Stefania Carvalho De Ostos.

 

Texto de: Natascha Stefania Carvalho De Ostos – Doutora em História

 

[1] Mitos, emblemas, sinais. Morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

[2] Idem, p. 150-151.

[3] KATZ, Naftale. Naftale Katz (depoimento, 2019). [Entrevista concedida a Natascha Stefania         Carvalho De Ostos e Roberto Sena Rocha]. Belo Horizonte, 30 out. 2019, 30 p..

[4] KATZ, Naftale. Naftale Katz (depoimento, 2019). Idem.

[5] KATZ, Naftale. Discurso de posse na Academia Mineira de Medicina, 2005. Disponível em:         <http://www.acadmedmg.org.br/ocupante/naftale-katz/>.

[6] KATZ, Naftale. Naftale Katz (depoimento, 2019). Ibidem.

[7] KATZ, Naftale. Naftale Katz (depoimento, 2019). Idem.

[8] KATZ, Naftale. Naftale Katz (depoimento, 2019). [Entrevista concedida a Natascha Stefania         Carvalho De Ostos]. Belo Horizonte, 31 out. 2019, 23 p..

 [9] COELHO, Paulo Marcos Zech. Homenagem a Naftale Katz. Pesquisador Emérito da Fiocruz.          Belo Horizonte, junho de 2012.

[10] SCHALL, Virgínia. Contos de fatos. Histórias de Manguinhos. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2001, p. 82.

[11] SILVA JR., Maurício Guilherme. No encalço dos genes. Minas Faz Ciência, edição especial, Fapemig, p. 14.

[12] FIOCRUZ. Reunião Conselho deliberativo da Fiocruz, 24 nov. 2011. Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/01-pres-011-ata-cd-24novembro2011.pdf>.

[13] GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. Ibidem, p. 179.