Pesquisa apresenta panorama inédito dos bancos de alimentos brasileiros

relatorio_m_0

O combate à fome tem sido pauta de muitos debates no Brasil, desde que a Organização das Nações Unidas (ONU) anunciou, em julho deste ano, a volta do país para o mapa da fome. Um estudo da Fiocruz Minas traz informações que poderão contribuir para as discussões, ao traçar um panorama inédito de todos os bancos de alimentos que atuam no território brasileiro. A pesquisa mostrou quantos são, como estão distribuídos pelo país, de que forma desempenham suas atividades e ainda se estão cumprindo os objetivos a que se propõem. O estudo é fruto da tese de doutorado da estudante do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Fiocruz Minas Natalia Tenuta, sob orientação do pesquisador Rômulo Paes, líder do Grupo de Políticas de Saúde e Proteção Social. A pesquisa foi encomendada pelo Ministério da Cidadania, que divulgou os resultados em um relatório técnico.

Definidos por uma portaria do governo federal publicada em abril de 2016, os bancos de alimentos são estruturas físicas e/ou logísticas que oferecem o serviço de coleta e/ou recebimento de alimentos doados, para que sejam distribuídos gratuitamente a pessoas em situação de vulnerabilidade social. O trabalho desenvolvido pelos bancos consiste em fazer parcerias com organizações que atuam na produção, beneficiamento, comercialização e distribuição de alimentos, de forma que potenciais perdas ou desperdícios que possam ocorrer ao longo da cadeia de produção e abastecimento sejam evitados, por meio de doações. Os alimentos arrecadados pelos bancos são selecionados, porcionados e, então, distribuídos para instituições sociais, complementando a alimentação de pessoas em vulnerabilidade social, alimentar e nutricional, com produtos em condições seguras de consumo.

Para identificar os bancos de alimentos que existem no Brasil, uma equipe liderada pela doutoranda fez um levantamento de todas as iniciativas dessa natureza. Ao todo, foram identificados 233 bancos. “Para chegar a esse número, contamos com o apoio do Ministério da Cidadania, que forneceu dados da Rede Brasileira de Bancos de Alimentos, e do Departamento Nacional do Serviço Social do Comércio (Sesc), que disponibilizou informações sobre a Rede Mesa Brasil, pela qual é responsável. Além disso, foi realizada uma busca ativa das instalações existentes e em funcionamento no país, por meio da nossa rede de contatos e de notícias publicadas na internet”, conta Tenuta. Com o levantamento em mãos, a equipe enviou um questionário aos 233 bancos identificados. Desse total, apenas seis não responderam. Outros dez não estavam em funcionamento e, por isso, foram excluídos da amostra, totalizando 217 unidades investigadas.

Perfil- Um dos aspectos que a pesquisa buscou conhecer foi quem são os bancos de alimentos brasileiros, por meio da verificação de quem os gerencia. O estudo constatou que a gestão ocorre em quatro modalidades: 42,86% são bancos de alimentos públicos, administrados e mantidos pelas prefeituras; 41,01% são bancos de alimentos da Rede Mesa Brasil, implantados e gerenciados pelo Sesc; 11,98% são bancos de alimentos das organizações da sociedade civil, instaladas e custeadas por organizações mantenedoras e outros parceiros de apoio; e 4,15% são os bancos de alimentos localizados dentro das centrais de abastecimento -onde estão concentradas  lojas que vendem alimentos tanto no atacado quanto no varejo-, sendo administrados e mantidos pelas próprias centrais de abastecimento.

Outra pergunta respondida pela pesquisa foi de que forma os bancos de alimentos operam. De acordo com os resultados, no Brasil, há duas modalidades operacionais: convencional e colheita urbana. Na convencional, o banco de alimentos está sediado em um prédio adaptado para serviços administrativos e operacionais, como triagem, armazenamento, porcionamento e distribuição de alimentos para doação aos beneficiários. As doações podem ser recebidas nas instalações do banco ou recolhidas nos espaços dos doadores. Cabe aos beneficiários buscar as doações diretamente no banco de alimentos. Já na modalidade colheita urbana, apenas as atividades administrativas são realizadas em uma matriz. A equipe operacional desses bancos vai até os parceiros doadores para coletar as doações e realiza, no próprio estabelecimento doador, as etapas de triagem e porcionamento, seguidas da entrega imediata dos alimentos aos beneficiários. Segundo o estudo, 64,52% dos bancos brasileiros operam na modalidade convencional e 35,48% na colheita urbana, sendo a Rede Mesa Brasil Sesc a que mais atua nessa segunda modalidade.

No que se refere à distribuição geográfica, a pesquisa constatou que existem bancos de alimentos nas 27 unidades federativas do país, estando mais concentrados na Região Sudeste, seguido por Sul e Nordeste. Os bancos de alimentos públicos estão mais presentes na Região Sudeste, com destaque para os estados de Minas Gerais, com 36 unidades, e São Paulo, com 20. Vários estados, principalmente da Região Norte, não contam com essa modalidade de gestão. Os bancos de alimentos da Rede Mesa Brasil Sesc são os únicos presentes em todos os estados e no Distrito Federal. Os bancos de alimentos das organizações da sociedade civil concentram-se em grande parte no estado do Rio Grande do Sul, que possui 20 dos 26 bancos dessa modalidade. Já os bancos de alimentos dos centros de abastecimento estão localizados principalmente nas Regiões Sul e Sudeste.

“As regiões mais populosas, como Sudeste, Nordeste e Sul, são as que têm mais bancos de alimentos. Entretanto, nos chamou atenção haver grandes regiões do país sem bancos de alimentos e ainda o fato de alguns grandes centros urbanos, como Florianópolis, Manaus e Belém, terem apenas uma unidade”, comenta Tenuta.

Performance – Outro importante aspecto verificado foi o desempenho dos bancos de alimentos. Para fazer essa análise, a equipe formulou perguntas que permitissem compreender se os bancos estão atendendo aos seus objetivos fundamentais que são: combater perdas e desperdícios de alimentos, garantir a segurança alimentar e nutricional e realizar ações de educação alimentar e nutricional.

Visando verificar se os bancos estão contribuindo para evitar as perdas e desperdícios, o estudo investigou a procedência dos alimentos disponibilizados pelos bancos, verificando o perfil dos parceiros doadores. Os resultados mostraram que 46,54% dos bancos de alimentos firmam parcerias com empresas que atuam no final da cadeia de abastecimento alimentar, como armazéns, mercados, supermercados e hipermercados. Essa característica difere apenas nos bancos de alimentos das centrais de abastecimento que se articulam principalmente com parceiros doadores instalados na própria central.

“Esses resultados mostram que os bancos de alimentos brasileiros estão deixando de acessar parceiros potenciais, que atuam nas diferentes etapas da cadeia de produção e abastecimento. Isso indica a necessidade de se ampliar a coleta de alimentos em outros setores, onde ocorrem perdas significativas, como na produção, processamento, manipulação e armazenamento de alimentos”, explica a doutoranda.

Os resultados mostraram ainda que algumas práticas alternativas são utilizadas pelos bancos de alimentos brasileiros para complementar seus estoques, como, por exemplo, a compra de alimentos por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), iniciativa governamental que visa estimular a agricultura familiar. Os bancos públicos foram os que mais acionaram o PAA, com 64,52% das unidades adotando essa prática. Dentre os bancos da Rede Mesa Brasil do Sesc, 48,31% possuíam esse estoque complementar, seguidos pelos bancos de alimentos das centrais de abastecimento (33,33%) e bancos de alimentos de organizações da sociedade civil (15,38%).

“Os gestores estão aproveitando uma estrutura física já disponível e também uma equipe capacitada para lidar com alimentos para apoiar o programa de estímulo à agricultura familiar, que também é uma política pública. Mas é preciso cuidado, pois à medida que as compras de alimentos crescem em importância dentro dos bancos, essas unidades podem se desviar de seu objetivo primordial de combater perdas e desperdícios. Tudo precisa ser equalizado de forma a potencializar o melhor dos dois programas. No caso do PAA, exige-se muito da qualidade dos alimentos, ou seja, não se compra uma banana madura demais, pois ela vai estragar muito rápido; por outro lado, ao conectar seus parceiros doadores, o objetivo do banco é justamente coletar os alimentos que podem se perder se não forem consumidos rapidamente”, avalia Tenuta.

A atuação em rede também fez parte da análise. Conforme a pesquisa, 57,60% dos bancos de alimentos participam de redes locais e/ou regionais. Essa forma de atuar ocorre em 92,31% dos bancos de alimentos das organizações da sociedade civil, em 58,06% dos bancos de alimentos públicos, em 48,31% dos bancos de alimentos da Rede Mesa Brasil Sesc e em 44,44% dos bancos de alimentos das centrais de abastecimento.

Com o intuito de verificar o cumprimento do segundo objetivo, ou seja, garantir a segurança alimentar e nutricional, investigou-se o perfil dos principais beneficiários dos bancos de alimentos brasileiros. Os resultados mostraram que 41,47% dos bancos têm famílias em risco social como principais beneficiárias, enquanto 36,87% atendem principalmente crianças, por meio da entrega de doações de alimentos a instituições de creche. Nas quatro modalidades, esses dois perfis de beneficiários são os mais expressivos.

Outro aspecto verificado foi o perfil nutricional dos alimentos mais recebidos pelos bancos de alimentos. Constatou-se que 85,25% dos bancos brasileiros têm frutas e hortaliças como o tipo de alimento mais recorrente nos estoques operacionais, característica detectada em 96,63% das instalações da Rede Mesa Brasil Sesc, em 91,40% dos bancos de alimentos públicos municipais e em 88,89% dos instalados em centrais de abastecimento.

“Por se tratar de uma iniciativa que tem o objetivo de garantir segurança nutricional, é importante se afastar dos alimentos ultraprocessados. Portanto, ficamos felizes em constatar que estão sendo arrecadados produtos que cumprem bem esse objetivo”, comenta a pesquisadora.

No que se refere à qualidade, 90,32% dos bancos de alimentos brasileiros relataram que utilizam até 75% do volume total de alimentos coletados. Desses, destacam-se os bancos de alimentos das organizações da sociedade civil e a Rede Mesa Brasil Sesc por apresentarem as maiores taxas de recuperação, utilizando 96,15% e 95,51% dos alimentos arrecadados, respectivamente. A maioria dos bancos de alimentos investigados consegue distribuir mais de 20 toneladas de alimentos anualmente, sendo que alguns ultrapassam essa marca.

“Observamos que os bancos que trabalham em rede têm um percentual de aproveitamento maior. A atuação em rede permite fazer trocas, potencializando a estrutura e os recursos que cada um tem”, avalia a pesquisadora.

Por fim, o estudo também constatou o cumprimento do terceiro objetivo dos bancos, ou seja, promover ações de educação alimentar e nutricional. Em 87,56% dos bancos, as atividades são voltadas para instituições, famílias beneficiárias e pessoas físicas (87,56%), seguidas de ações voltadas para seus colaboradores e funcionários (86,64%). As atividades educativas são oferecidas aos parceiros doadores por 75,12% dos bancos de alimentos.

Para o pesquisador Rômulo Paes, o panorama traçado por meio do estudo mostra como se faz, na prática, a política de segurança alimentar e nutricional. “Com esse trabalho, é possível saber onde estão, o que é, como conseguem operar, de fato. Temos uma rede que, por meio de uma política pública desenvolvida no início dos anos 2000, cresceu e se qualificou, ainda que nos últimos anos não tenha recebido incentivos. Portanto, esse trabalho permite saber em que ponto se está, de forma que se possa retomar esse investimento com vigor”, afirma.

Iniciado em 2018, o estudo é o primeiro a ser realizado no Brasil abrangendo a totalidade de bancos de alimentos, em todas as suas modalidades. Os resultados da pesquisa foram descritos em um artigo intitulado Brazilian Food Banks: Overview and Perspectives, publicado recentemente no International Journal of Environmental Research and Public Health. Acesse e veja análise completa.