Virgínia Schall

VirginiaVirgínia Torres Schall de Matos Pinto, Virgínia Schall ou apenas Gina, para os familiares e amigos teve uma vida memorável. Ao longo dela construiu um grande acervo com seus trabalhos, projetos, fotografias, recortes de jornais, cartas, entre outros. Segundo os familiares, Virgínia deixou muitos registros, pois, não queria ser esquecida. Ela dizia que “a vida era um breve clarão entre duas escuridões: nascer e morrer”. No seu breve flash, Virgínia foi luz! Além de grande intelectual, professora, cientista, poetisa, era uma mulher elegante, alegre, reconhecida pelo seu cheiro marcante, sua postura amiga, pelo barulho do salto alto, seu cabelo loiro, sua pró-atividade, suas joias e ideias mirabolantes.

Schall nasceu em Montes Claros, no dia 2 de junho 1954 e guarda uma história curiosa. Sua família vivia na cidade de Alvinópolis, na região centro-oeste do estado de Minas Gerais. No entanto, sua avó paterna não queria que sua neta primogênita nascesse pelas mãos de uma parteira. Enfermeira que era, a avó queria uma assistência hospitalar para o parto e por isso, a família, deslocou-se para Montes Claros onde puderam contar com boa assistência médico-hospitalar. Num período marcado pela institucionalização do discurso médico, interferindo diretamente na concepção de maternidade, era a ciência atravessando sua vida.[1]

Em uma breve contextualização da trajetória de Virgínia, cabe destacar seu nascimento na década de 1950, em pleno pós-guerra. Ela fez parte de uma geração que se encantou com as possibilidades das ciências, quebrou preconceitos e testemunhou mudanças profundas na sociedade. Acompanhou o processo de redemocratização do país, a emergência e consolidação do campo da Saúde Coletiva, a Reforma Sanitária e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), a formulação da Carta de Ottawa[2], o advento da internet e a evolução das tecnologias de informação e comunicação. [3]

Filha de José Reynhold Schall e Otília Torres Schall foi primogênita entre cinco mulheres. Segundo as suas irmãs, por ser a mais velha, abriu caminhos e quebrou tabus, tornando-se ao longo da vida o cerne da família, o porto seguro. Virgínia passou a infância na cidade de Alvinópolis e a adolescência em João Monlevade. Traço importante dessa fase de sua vida, foi a vivência nos ambientes católicos[4], participava de coroações do mês de maio e das festividades religiosas. Estudou em colégio de freiras, onde conviveu com professoras que praticavam a Teologia da Libertação[5]. Este contato possibilitou uma sensibilidade para questões sociais e de equidade que marcaram profundamente sua trajetória profissional no campo da Educação em Saúde.

Em 1970, em João Monlevade, fez o segundo grau, cursou conjuntamente o ensino normal e científico. Nesse período era conhecida como a queridinha da escola. Destacava-se nas disciplinas de artes e língua portuguesa. Já a matemática era seu grande desafio.

Aos 18 anos, mudou-se com a família para Belo Horizonte para que pudesse cursar o ensino superior. O sonho de Schall era ingressar no curso de Belas Artes. Porém, impedida pelo pai, cursou Psicologia. Casou-se aos 23 anos com o engenheiro mineiro Roberto Emerson de Matos Pinto e teve dois filhos, Francisco Daniel e Brunah.

Graduou-se em Psicologia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em 1978. Estagiou em neurofisiologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em função do interesse pelos aspectos biológicos e fisiológicos do comportamento. Foi bolsista de Iniciação Científica do CNPq sob orientação de Fernando Pimentel de Souza que utilizava caramujos como modelo experimental para estudo do cérebro humano.

Em 1975, ganhou o Prêmio Jovem Cientista do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura com o trabalho sobre o comportamento do caramujo Biomphalaria glabrata, hospedeiro do Schistosoma mansoni. Seguiu esse tema no Mestrado em Fisiologia e Biofísica na UFMG (1978-1980).  Em 1980, defendeu o mestrado com dissertação intitulada: “Comportamento do caramujo Biomphalaria glabrata em um gradiente luminoso”[6]. Esse trabalho expressa bem o trânsito de suas pesquisas pelos campos biomédico e da educação em saúde.

Por motivo de transferência de emprego do marido, companheiros que eram mudaram-se para o Rio de Janeiro em 1980. Nessa ocasião ela passou a dar aulas no Departamento de Ciências Fisiológicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). No ano seguinte, a convite de Pedro Jurberg, professor da UERJ e pesquisador da Fiocruz, ingressou no Departamento de Biologia do Instituto Oswaldo Cruz (IOC). Pedro Jurberg também trabalhava com o comportamento do caramujo Biomphalaria glabrata e colaboraram durante algum tempo[7]. Em 1981, Virgínia tornou-se pesquisadora da Fiocruz do Departamento de Biologia do IOC. No que tange à Fiocruz, ela teve oportunidade de se beneficiar da abertura da instituição à difusão do conhecimento e à valorização da educação promovidas na gestão de Sérgio Arouca (1985-1989), primeira gestão após a redemocratização do país.

A partir do interesse na prevenção da esquistossomose, decorrentes de estudos sobre a doença no Rio de Janeiro, em 1987, Virgínia fez o curso de especialização no Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (NUTES) na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com o trabalho: Educação em Saúde no controle da esquistossomose. A sua dedicação ao campo da Educação em Saúde se intensificou ao longo dos anos, consolidada com a tese de doutorado Saúde e afetividade na infância: O que as crianças revelam e a sua importância na escola, defendida em 1996, no Departamento de Educação da PUC-RJ[8].

No campo da divulgação científica participou ativamente na concepção do primeiro projeto do Museu da Vida (Fiocruz, Rio de Janeiro), inaugurado em maio de 1999.  Em suas iniciativas de integrar a ciência à arte, Virgínia foi responsável pela criação do teatro Ciência em Cena, que apresenta peças sobre temas científicos em um espaço no campus da Fiocruz concebido por ela na década de 1990, hoje denominado Tenda da Ciência Virgínia Schall.

Ainda no campo da divulgação científica, a partir de pesquisas com professores e alunos, concebeu e desenvolveu 3 coleções de livros para crianças, intituladas: “Ciranda da Saúde”[9], “Ciranda do Meio Ambiente”[10] e “Ciranda da Vida”[11], os quais abordam de forma lúdica e prazerosa, questões de saúde e ambiente, possibilitando um valioso trabalho pedagógico em escolas do ensino fundamental. Participou da criação de três jogos[12] para adolescentes, um destinado à prevenção da Aids (Zig-Zaids), outro para prevenção ao uso indevido de drogas (O Jogo da Onda) e o terceiro voltado para divulgação das instituições culturais e científicas do Rio de Janeiro (Trilhas do Rio).

Ao longo de sua trajetória Schall, enfrentou desafios por ser mulher cientista e fugir aos estereótipos do mundo da ciência. Era uma mulher extremamente delicada, forte e vaidosa. Retratada pelos familiares e amigos como uma mulher amiga, companheira, inquieta e com enorme senso de justiça e dedicada ao trabalho. Desta forma, como pioneira no campo, sua produção constitui enorme riqueza e memória do campo de educação em saúde e divulgação científica no Brasil. Em 1991, recebeu o Prêmio José Reis de divulgação científica do CNPq, um dos mais importantes dessa área. Ademais, em seu compromisso com as novas gerações, buscou aliar a curiosidade do público estudantil ao mundo da ciência ao e coordenar por vários anos o Programa de Vocação Científica da Fiocruz.

Sua trajetória acadêmica foi marcada por uma expressiva produção científica, diversificada e inovadora, pela paixão à ciência e sensibilidade para as desigualdades sociais existentes no país. Estes fatores a motivaram a desenvolver e fortalecer ações educativas com crianças e jovens, professores e famílias e em parceria com escolas públicas, fomentando a construção de conhecimentos para prevenção de doenças e promoção da saúde, comprometidos com a valorização da vida e com a transformação social. Além de uma expressiva produção científica, Virgínia esteve diretamente envolvida na construção de dois cursos de pós-graduação no Rio de Janeiro e em Minas Gerais.

Paralela à sua carreira científica, nunca abandonou sua inclinação para artes. Durante toda sua vida, dedicou-se a escrita de poemas e integrou a Academia Feminina de Letras de Minas Gerais. Ganhou o Prêmio de Poesias da Academia Feminina Mineira de Letras. Teve seis poemas incluídos na antologia: “Poetas de Manguinhos”, publicado em 1997[13] e um livro de poesias: “O Rio em Poesia”. Seu livro, “Contos de Fatos”[14], publicado em 2001, no qual escreve biografias e descobertas científicas de 15 destacados pesquisadores da Fiocruz. Em 2009, publicou seu último livro no campo da literatura: “In Minas Memória[15].

Virgínia Schall faleceu em 2015, com apenas 60 de idade, com muitas ideias e inciativas em curso. Deixou um importante legado em diferentes ações científicas, da pesquisa empírica à divulgação científica. Foi uma cientista plural, cuja atuação sólida foi marcada por um estilo investigativo inovador capaz de identificar potencialidade a partir de observações do cotidiano e por uma trajetória de paixão aos temas que abordava e às pesquisas que desenvolvia, sempre com olhar sensível às causas sociais. Sua vida acadêmica foi permeada pelo compromisso de promover o empoderamento[16] das pessoas e comunidades, valorizando a participação nas atividades ligadas a prevenção e ao controle de doenças, não só para fortalecer as ações, mas, principalmente como perspectiva para a construção de um futuro mais justo e com qualidade de vida.

A história de Virgínia Schall, não está encerrada e é reinventada, em contínuo processo de construção. Sua biografia apresenta uma rede diversificada de atores que transita pelo universo privado e público. Trata-se de uma vida plural e colorida. Há ainda muitas indagações, muitos caminhos a serem percorridos os quais não sabemos se ida ou volta como no seu poema…

 

Ida ou volta?

Virgínia Schall, 1997

 

Antes de partir

Já estou partida,

Fendida em sentimentos e paisagens,

Meus olhos ainda aqui

Parecem em retorno

E derramam saudade em cada objeto.cir

Não sei estar nem ser presente:

Amálgama de antes a derramar-se sobre o agora,

Colagem de cenas, de rostos amados, de cheiros e atmosferas.

Como ausentar-me do passado?

Como desfazer–me desta melancolia fluída que lava permanentemente minha

alma?

Onde encontrar-me pura de um instante?

Não me sei verdadeira, estou contaminada de tantos outros e de tantos

rascunhos de mim mesma,

Busco passar-me a limpo e não encontro a pena, o papel, a tinta, a letra, a

escrita.

Tudo é provisório,

Esboços e cópias lançados fora a cada minuto vivido,

Imagem passageira em cena volátil.

O tempo, tela abstrata de muitos eus sucessivos,

De encontros e desencontros, de tentativas

O tempo, que me muda e transmuda,

Me leva em viagem, me traga e me lança.

Assim, neste momento, sigo o fluxo: em ida ou volta?

Colhida na incerteza, deixo-me ir,

Sem saber se estou em retorno

Ou no começo de um novo caminho.

O que não posso é parar,

Em movimento vivo e revivo:

Sofro e me encanto,

Existo.

 

Sigamos seu feixe de luz!

Projeto Memória. Trajetória histórica e científica do Instituto René Rachou – Fiocruz Minas.

Coordenadores: Dr.ª Zélia Maria Profeta da Luz; Dr. Roberto Sena Rocha.

Historiadora: Dr.ª Natascha Stefania Carvalho De Ostos.

 

Texto de Polyana Aparecida Valente – Doutora em História

 

Projetos:

 

  • “As mulheres na Educação em Saúde e Medicina Tropical: entrelaçando gênero e ciência com a trajetória de Virgínia Schall” – Edital Pós-doc Jr. Inova de Polyana Aparecida Valente. Supervisão Dra. Denise Pimenta
  • “Evocando o legado de Virgínia Schall: memórias, ciência, saúde e educação para o SUS” – Coordenação: Dra. Denise Pimenta

[1] O fenômeno da hospitalização do parto é universal e nos países desenvolvidos do Ocidente foi mais precoce. Em países como os Estados Unidos, Inglaterra, França, Noruega e Suécia, a transição do parto domiciliar para o hospitalar teve início do século XX, no período entre guerras, enquanto que no Brasil, o parto hospitalar tornou-se mais comum no final dos anos 1950 e mais efetivamente nos anos 1960, com a crescente expansão da assistência hospitalar. Sobre isso ver: LEISTER, Nathalie; RIESCO, Maria Luiza Gonzalez. Assistência ao parto: história oral de mulheres que deram à luz nas décadas de 1940 a 1980. Texto contexto – enferm, Florianópolis,  v. 22, n. 1, p. 166-174,  Mar.  2013

[2] Primeira Conferência Internacional Sobre Promoção Da Saúde Ottawa, novembro de 1986

[3] PIMENTA, Denise Nacif. STRUCHINER, Miriam e MONTEIRO, Simone Souza. A trajetória de Virgínia Schall: integrando saúde, educação, ciência e literatura. In: Revista Ciência e Saúde Coletiva da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, 2017. p. 1-6

[4] Esses colégios atendiam uma clientela bem específica de mulheres, pertencentes a elites econômicas e políticas. Dentro desses espaços escolares, as estudantes compartilhavam valores, se organizavam em grêmios, festas que de alguma maneira lhe renderam amizades, mas sobretudo, capacidade administrativa, de organização de metas e formação de agendas pautadas nos interesses femininos. Além disso, viviam experiências filantrópicas de assistência à saúde dos desfavorecidos. (VALENTE, 2016)

[5] Sobre a Teologia da Libertação ver: https://leonardoboff.wordpress.com/2011/08/09/quarenta-anos-da-teologia-da-libertacao/

[6] SCHALL, V. T. Comportamento do caramujo Biomphalaria glabrata em um gradiente luminoso. 1980. 89 f. Dissertação (Mestrado em Fisiologia e Biofísica) – Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1980.

[7] Vale destacar que Pedro Juberg e Virgínia trabalharam em colaboração nos primeiros anos da presença dela no IOC. Nesse período publicaram 3 artigos na revista Memórias. O primeiro deles no ano de 1985. Uma característica marcante dos trabalhos publicados em parceria com Pedro Juberg é o teor mais biológico da análise devido ao teor editorial do periódico. Somente em 1987, Virgínia publicou, sem coautoria o trabalho intitulado, “Health education for children in the control of Schistosomiasis”. Com esse trabalho destaca-se como a primeira pesquisadora a publicar um artigo que envolve sujeitos humanos no ambiente escolar na Memórias. No trabalho, Virgínia destaca a importância do trabalho com crianças na prevenção de doenças. Sobre isso ver: (Valente, et al., 2019)

[8] SCHALL, V. T. Saúde e Afetividade na Infância: o que as crianças revelam e sua importância na escola. Tese de doutorado. Puc-Rio de Janeiro.RJ. 1996

[9] SCHALL, V. T.. CIRANDA DA SAÚDE. 1a. ed. Rio de Janeiro: ANTARES, 1986. v. 6. 180p

[10] SCHALL, V. T.. Ciranda do Meio Ambiente. 1a. ed. Rio de Janeiro: Memórias Futuras Edições, 1989. v. 10. 240p

[11] SCHALL, V. T.. Coleção Ciranda Da Vida – livro do professor vol 2. 1a. ed. Rio de Janeiro: Memórias Futuras Edições, 1994. v. 2000. 128p

[12] A coleção completa dos jogos está disponível para consulta local na biblioteca do Museu da Vida –Fiocruz/RJ

[13]  SCHALL, V. T.. Poetas de Manguinhos. Rio de Janeiro: Cooperativa Cultural de Manguinhos/FIOCRUZ, 1997

[14] SCHALL, V. T.. Contos de Fatos – Histórias de Manguinhos. 1a.. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001. v. 1. 258p

[15] SCHALL, V. T.. In Min(as) Memoria. 1a. ed. Belo Horizonte: O Lutador, 2009. v. 1. 99p.

[16] Trata-se de um conceito amplamente discutido na contemporaneidade, talvez Virgínia tão tenha discutido diretamente, mas sem dúvida produzido uma ciência engajada e construída em parceria com as comunidades e grupos com os quais trabalho. Ver sobre a Teoria do Empoderamento: BERTH, Joice. Empoderamento – São Paulo: Sueli Carneiro; Polén, 2019. (Feminismos Plurais/ coordenação de Djamila Ribeiro).