20 anos do Sistema de Gestão de Qualidade do Instituto René Rachou – Fiocruz Minas

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 Introdução

Ao longo do século XX as tecnologias avançaram de modo extraordinário, integrando processos industriais, comerciais e científicos. A intensa troca de conhecimento, informações e bens de consumo gerou a necessidade de estabelecer sistemas de padronização nas mais diversas áreas, de forma a criar convenções que permitissem a verificação e o controle de qualidade de produtos e informações. No ano de 1947 foi fundada a Organization for Standardization (Organização Internacional de Normalização – ISO). A entidade, que hoje reúne 168 associados de vários países, se dedica à padronização/normalização internacional em diversas áreas e temáticas, como: unidades e medidas, transporte, qualidade ambiental, saúde e segurança ocupacional, energia e tecnologias.[1] Na organização, o Brasil é representado pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), criada em 1940, membro fundador da ISO.[2]

O senso comum muitas vezes equipara o conceito de Sistema de Gestão de Qualidade (SGQ) com a noção de Controle de Qualidade. Porém, segundo Ivanete Milagres, o último termo refere-se ao monitoramento de produtos e serviços para verificar se atendem aos requisitos técnicos. Podem ser citados testes e ensaios que garantem a qualidade do produto: controle da água, com testes microbiológicos e físico-químicos; controle de qualidade de medicamentos, garantindo segurança e eficácia. Já o SGQ, como o próprio nome indica, é mais amplo, abrangendo todos os procedimentos, processos e recursos necessários para o funcionamento da gestão da qualidade em uma instituição.[3]

Desde a década de 1970 se discutia a necessidade de criação de normas pertinentes ao funcionamento de laboratórios, tendo em vista a constatação pelo Food and Drug Administration (FDA), agência dos EUA, de problemas em estudos de indústrias farmacêuticas.[4] No ano de 1981, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), publicou a primeira diretriz internacional sobre o assunto, os princípios de Boas Práticas de Laboratório (BPL), abrangendo temáticas como: instalações e equipamentos laboratoriais, registro de materiais, referência de substâncias, relatórios dos estudos, etc. A crescente sofisticação dos processos resultou na reedição periódica das normas e constante adequação dos cientistas e das instituições.

No caso do Brasil, a partir da década de 1990, os órgãos reguladores governamentais se empenharam em equalizar testes e atividades técnicas relacionadas ao uso e a fabricação de substâncias veterinárias, agrotóxicos, cosméticos, alimentos, etc. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (INMETRO), o Ministério da Agricultura e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), são alguns dos órgãos nacionais responsáveis por emitir e fiscalizar normativas.

As normas de SGQ para laboratórios de ensaios ou calibrações em diversas áreas do conhecimento iniciam-se com a publicação pela ISO do guia 25, no início da década de 1990, após consenso internacional. Porém, faltava no sistema normativo internacional diretrizes voltadas para a pesquisa biomédica básica e fases anteriores às pesquisas pré-clínicas. Para sanar tal lacuna, em 2006 a Organização Mundial da Saúde (OMS), lançou o manual Práticas de Qualidade na Pesquisa Biomédica Básica. O documento estabelece os fundamentos do Sistema de Gestão da Qualidade para a organização das pesquisas e a produção de dados verificáveis e confiáveis, alicerçados em princípios éticos e no cuidado com a biossegurança. [5] O manual foi traduzido pelo Instituto René Rachou (IRR) e constitui o principal suporte para o desenvolvimento de pesquisas de qualidade, com credibilidade na comunidade científica. Os princípios científicos aliados às boas práticas de qualidade na pesquisa garantem a credibilidade dos resultados.

O Sistema de Gestão da Qualidade no Instituto René Rachou – Fiocruz Minas

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sempre procurou, historicamente, aplicar métodos garantidores de qualidade nas pesquisas, de acordo com o contexto de cada época. Mas foi a partir do ano de 2002 que a instituição impulsionou a sistematização desses processos. Através da Portaria 430/2002 a Fiocruz estabeleceu critérios para o reconhecimento interno dos laboratórios de referência, incluindo o compromisso de “implantar e implementar um Sistema de Gestão da Qualidade”.[6] Tendo em vista tal normativa, o então diretor do IRR, Roberto Sena Rocha, determinou a criação de projeto de implantação do SGQ, sob responsabilidade da servidora, farmacêutica-bioquímica, Ivanete Milagres Presot, que possuía vasta experiência no tema.

Em 2003, as áreas de Qualidade e Biossegurança se integraram para somar expertises na implantação do SGQ e do programa de biossegurança. Um dos maiores desafios foi formar uma equipe especializada no assunto. Para suprir a carência de pessoal, bolsistas e terceirizados tiveram papel relevante em várias inciativas, como no caso do controle de qualidade de água e dos processos de esterilização. O trabalho com representantes de cada laboratório de referência e de pesquisa, denominados multiplicadores da qualidade, permitiu o crescimento do grupo, com a realização de um trabalho colaborativo. A participação de Mariana Pedras, que integrou a equipe desde o início, como bolsista, e sua permanência até hoje, já como servidora, demonstra o compromisso de colaboradores com vínculos diversos para a implantação do SGQ. Com o suporte do servidor Rogério Queiroz, do programa de biossegurança, e em ação conjunta com o grupo da qualidade, a instituição avançou na gestão de resíduos, com estruturação de depósitos. Com o tempo o SGQ cresceu e ganhou autonomia, incorporando novos concursados e pessoal proveniente de setores afins. Foi no ano de 2007 que o Núcleo da Qualidade e Biossegurança agregou atividades e passou a Serviço de Gestão da Qualidade, Biossegurança e Ambiente. O trabalho dos servidores foi, e continua sendo, fundamental para o sucesso das inúmeras iniciativas, sendo importante mencionar os colaboradores: as servidoras Carla Mônica, Fabíola Machado, Mariana Pereira, a bolsista Nádia Barros, e o mais novo bolsista e integrante da equipe Gabriel Latorre. Ivanete Milagres Presot liderou o SGQ por 15 anos, de 2002 a 2017, quando assumiu a coordenação de desenvolvimento institucional e foi substituída pela atual coordenadora, Márcia de Oliveira Siqueira.

Ao longo dos anos, o SGQ do Instituto René Rachou cresceu, tornando-se cada vez mais complexo e especializado. Em 2004 foi lançada a Política de Qualidade e iniciou-se o uso do livro de registro vinculado aos projetos de pesquisa, ferramenta essencial para a verificação confiável do histórico de dados. Na ocasião, Ary Miranda, Vice-Presidente de Serviços de Referência e Ambiente da Fiocruz, declarou que, “O René saiu na frente na busca da qualidade. A formulação da política da qualidade somada à grande adesão ao programa […] é um indicador da incorporação disso como um valor no René”.[7] Daí em diante as inciativas se multiplicaram, de tal modo que o Núcleo de Qualidade e Biossegurança decidiu pela criação, em 2005, de um Boletim Informativo para divulgar, dentro do IRR, todas as atividades da área. O informativo trazia diversas notícias e esclarecimentos para a comunidade: Procedimentos Operacionais Padrão a serem seguidos na manutenção de equipamentos; destinação de resíduos, químicos, radioativos e biológicos; controle de pragas; auditorias internas; análise de águas; coleta seletiva; gerenciamento de documentos; treinamento de multiplicadores da qualidade; contingências para o enfrentamento da Covid-19 no IRR, etc.

Impossível mencionar todos os marcos desses 20 anos de ação do SGQ no Instituto René Rachou, mas algumas iniciativas sobressaem pelo impacto positivo na instituição como um todo, como a criação da Central de Esterilização de materiais de laboratório e o aperfeiçoamento da distribuição e controle de qualidade da água. Também se destaca a realização da I Semana da Qualidade e Biossegurança do IRR, no ano de 2007, que contou com ampla programação e participação de diversos setores da instituição. Outro momento importante foi o primeiro processo de reconhecimento externo de serviço de referência do IRR, em 2011: Homologação pela Rede Metrológica de Minas Gerais de 2 ensaios realizados no Laboratório de Helmintologia e Malacologia Médica; Identificação morfológica de moluscos do gênero Biomphalaria e Identificação molecular de moluscos do gênero Biomphalaria.

No ano de 2012 o IRR implantou projeto inovador, organizando Oficinas em SGQ para Profissionais de Laboratórios de Pesquisa, com o objetivo de capacitar colaboradores para atuarem na implantação de boas práticas da qualidade na pesquisa. Para tanto, Ivanete Presot, então coordenadora do setor, como parte do seu projeto de doutorado, e com apoio da pedagoga Helena Maria Campos, elaboraram cartilha temática com as propostas e ferramentas para a estruturação das oficinas.[8] As atividades, fundadas em dinâmicas de grupo, buscaram incentivar a participação, a escuta e a construção conjunta do conhecimento entre os participantes. O material e a expertise das oficinas auxiliaram na criação de disciplinas optativas sobre SGQ, ofertadas nos programas de Pós-Graduação da instituição. Outro produto do doutorado foi o diagnóstico de implantação das práticas de qualidade na pesquisa no IRR, com desenvolvimento de ferramenta para avaliação contínua. Em 2016, a Fiocruz, inspirada pela iniciava do IRR, implantou o programa Práticas de Qualidade para toda a instituição, com aplicação do questionário avaliativo anual sobre SGQ para laboratórios de pesquisa.[9]

As iniciativas citadas, e tantas outras promovidas pelo SGQ do IRR, tem garantido a rastreabilidade, reprodutibilidade, transparência, confiabilidade e compartilhamento dos dados; além da integridade e ética na pesquisa, princípios das boas práticas científicas. Mais recentemente, em 2022, foi implementado o livro de registro eletrônico como resultado do Projeto Inova Gestão, iniciado no ano de 2021. Os atuais desafios para o SGQ da Fiocruz Minas envolvem a informatização dos processos, a crescente complexidade das etapas e exigências da área, o debate sobre a Ciência Aberta, que demanda uma estrutura sofisticada de comunicação de dados. Para marcar as comemorações das duas décadas do SGQ no IRR foi lançada programação especial na 17ª Semana da Qualidade, Biossegurança e Ambiente – Fiocruz Minas, descrita na página web do evento, a ocorrer em agosto de 2023.[10]

Nos seus 20 anos de existência no Instituto René Rachou, o Sistema de Gestão de Qualidade ampliou seus programas de gestão e capacitação, e hoje integra pessoas e conhecimentos em rede. Os bons frutos desse trabalho devem ser creditados aos funcionários e membros da equipe do SGQ, que dedicaram seu tempo, conhecimento e entusiasmo pela qualidade da ciência produzida na Fiocruz Minas.

 

Texto: Natascha Stefania Carvalho Ostos – Historiadora do Projeto Memória do IRR.

Colaboração: Ivanete Milagres Presot e Roberto Sena Rocha.

 

[1] About us. ISO. Disponível em: <https://www.iso.org/about-us.html>.

[2] Quem somos. ABNT. Disponível em: <http://www.abnt.org.br/institucional/sobre>.

[3] PRESOT, Ivanete Milagres. Entrevista concedida ao Projeto Memória do Instituto René Rachou. Entrevistadora:  Natascha Ostos, 22 jun. 2023.

[4] GALACHO, Cristina. Boas Práticas de Laboratório: Como surgiram? O que são? A que se aplicam?. Boletim da Sociedade Portuguesa de Química, n. 128, 2013, p. 2-3.

[5] PRESOT, Ivanete Milagres. Educação permanente em sistema de gestão da qualidade: diagnóstico e desenvolvimento de uma proposta para laboratórios de pesquisa. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde do Centro de Pesquisas René Rachou. Belo Horizonte, 2013, p. 21-22.

[6] FIOCRUZ. Portaria 430/2002. Critérios para reconhecimento interno dos laboratórios de referência, 13 set. 2002.

[7] CPqRR comemora seis meses do lançamento da Política da Qualidade. Boletim NUPLAM em Ação, 1º semestre 2005, p. 1.

[8] PRESOT, Ivanete Milagres; CAMPOS, Helena Maria. Oficinas em Sistema de Gestão da Qualidade para Profissionais de Laboratório de Pesquisa. Belo Horizonte, CPqRR, 2013.

[9] FIOCRUZ. Portaria 966/2016 da Presidência da Fiocruz, 26 set. 2016.

[10] FIOCRUZ. IRR. 17ª Semana da Qualidade, Biossegurança e Ambiente – Fiocruz Minas. Disponível em: <https://fiocruzminas.wixsite.com/meusite-1>.