“De vocês para nós e de nós para vocês”: circulação de informação científica no Ministério da Saúde na década de 1950

 “De vocês para nós e de nós para vocês”,[1] esse era o nome do informativo publicado inicialmente pelo Instituto de Malariologia (IM), ligado ao Serviço Nacional de Malária (SNM) do Ministério da Saúde. O IM era responsável por realizar pesquisas sobre a malária e outras doenças endêmicas.[2] O órgão, transferido do estado do Rio de Janeiro para Belo Horizonte em 1955, passou a funcionar em edifício recém-construído na capital mineira, e que hoje abriga a Fiocruz Minas.

A mudança do IM resultou na transferência de funcionários, dentre os quais diversos pesquisadores. Essa realocação certamente impactou o dia-a-dia do órgão federal, implicando em ajustes burocráticos e no andamento das pesquisas, o que provavelmente levou à iniciativa de publicar, logo após a instalação na capital mineira do IM, de um Boletim, de forma a manter aberta a comunicação entre os departamentos governamentais ligados à saúde, e garantir que, com a transferência do Instituto para Belo Horizonte, o órgão não perdesse seu protagonismo como referência na área de pesquisas.

O primeiro número foi lançado em dezembro de 1955. O título do impresso é sugestivo (e informal para a época), indicando disposição para o diálogo, uma via aberta de fala e escuta. A publicação foi qualificada como “Boletim consulto-informativo do Instituto de Malariologia”, e na apresentação da primeira edição detalhou a proposta.[3] O objetivo era fazer do periódico um veículo de troca de informações, organizadas por meio de perguntas/dúvidas/consultas que poderiam ser enviadas por integrantes da estrutura do Ministério da Saúde em seus diversos órgãos, para serem respondidas por especialistas, não apenas do IM. Tratava-se, portanto, de uma verdadeira plataforma de intercâmbio de conhecimento e dados, e de formação indireta dos quadros técnicos. O desenho era simples e objetivo, as questões deveriam ser enviadas no formato de perguntas, e as respostas seriam curtas, de forma a contemplar o maior número possível de consulentes, cujos nomes não foram publicados, talvez para preservar os autores de constrangimento quanto ao teor de suas dúvidas. Já as respostas eram assinadas pelos especialistas, o que certamente visava conferir credibilidade e transparência à explicação fornecida.

Cada edição, mensal, era composta por cerca de cinco páginas mimeografadas, contendo em média dez perguntas. A primeira resposta publicada foi escrita pelo médico René Guimarães Rachou, diretor da Instituição. As edições iniciais eram maiores, sinalizando uma demanda reprimida por informações e interesse pela novidade da proposta. Em abril de 1956, o boletim alterou sua filiação. Publicou nota esclarecendo que, diante de mudanças administrativas, o IM foi transformado em Centro de Pesquisas de Belo Horizonte (CPBH), integrando a estrutura do Instituto Nacional de Endemias Rurais (INERu), órgão responsável por promover pesquisas sob o comando do Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERu).[4] Esse fato não alterou o formato do impresso.

Trecho do Boletim informando a transformação do Instituto de Malariologia em Centro de Pesquisas de Belo Horizonte. In: MINISTÉRIO DA SAÚDE. “De Vocês para nós e de nós para vocês”. Boletim consultivo-informativo do Centro de Pesquisas de Belo Horizonte. Belo Horizonte, n. 5, IV/1956. Acervo Alda Lima Falcão – Fiocruz Minas.

A maioria dos cientistas que atendia as demandas integrava a estrutura do CPBH, normalmente respondendo perguntas pertinentes a suas áreas de estudo. Assim, por exemplo, o químico Ernest Paulini, explicava temas relacionados a substâncias e compostos químicos, como o DDT. José Pellegrino e Zigman Brener, especialistas em Doença de Chagas, cuidavam das dúvidas relativas a essa temática. Muitas perguntas estavam relacionadas ao campo da esquistossomose, talvez pelo fato da doença ter uma longa história de pesquisas em Minas Gerais, notadamente na pessoa de Amilcar Vianna Martins, diretor do INERu que, nos boletins, quase sempre assinava os conteúdos sobre o assunto. Pesquisadores de outros locais também integravam os esforços, como Felipe Nery Guimarães, do Instituto Oswaldo Cruz, especialista em bouba, que tratou do tema; e Zamir de Oliveira, médico do DNERu, que escreveu sobre a peste. Dentre todos os estudiosos escalados para responder as dúvidas, constaram apenas duas mulheres, Alda Lima Falcão, do CPBH, designada para responder perguntas sobre flebotomíneos, e Hortência de Hollanda, responsável pela temática da educação sanitária. Esse fato indica a sub-representação das mulheres na carreira científica na época.

A proposta do boletim era mobilizar os maiores especialistas das áreas, de modo a fornecer as respostas mais qualificadas. Como consequência, as pessoas escolhidas para elaborar as informações tornavam-se, perante os leitores, referência no assunto. Configurava-se, assim, uma lista de autoridades, com credibilidade de fonte, o que potencializava, em teoria, a consulta futura a trabalhos desses autores; e também firmava o CPBH como instituição disseminadora de conhecimento. O interesse demonstrado pelo envio de perguntas, principalmente nos primeiros números da publicação, aponta para uma demanda reprimida de acesso a informação, desenhando um quadro interessante sobre quais temáticas mobilizavam os técnicos, funcionário e especialistas que integravam o conjunto de órgãos responsável pelo combate e estudo das endemias rurais.

Um dos assuntos que se destacava na publicação era o da ecologia. As perguntas sobre o tema eram básicas, demonstrando que a área do conhecimento era pouco consolidada naquele momento, uma novidade. Dentre as perguntas, todas respondidas pelo biólogo Roberto Milward de Andrade, do CPBH, constam: “Como definir Ecologia?”, “O que é plancton?”, “O que é limnologia?”, “Qual é o objetivo da Ecologia?”, “Como se divide a Ecologia?”.[5] Em termos comparativos, outras temáticas, consolidadas no meio científico do período, geravam questões mais verticalizadas, como no campo da descrição e detalhamento das espécies: “Porque Culex pipiens fatigans e não Culex fatigans ou Culex quinquefasciatus?”; “Há dimorfismo sexual acentuado entre flebótomos?”; “Onde já foi assinalada a presença de Phlebotomus longipalpis no Brasil?”.[6] A variedade das perguntas também revela o amplo espectro de atuação das atividades levadas a cabo pelos setores públicos da saúde, versando sobre aplicação e efeitos de inseticidas, como manipular e armazenar substâncias químicas, pedido de esclarecimento sobre campanhas sanitárias para o combate a doenças, métodos de pesquisa, diagnóstico e tratamento de patologias, distribuição geográfica de patógenos, dúvidas sobre definições, expressões e termos científicos (“O que são anofelinos exófilos?),[7] ciclos das doenças, etc.

Esse conjunto de questões, reunido no período de um ano de duração do boletim, configura um quadro revelador dos elementos que compunham o horizonte de trabalho no campo da saúde publica da época: os desafios e problemas enfrentados (muitas perguntas eram sobre esquistossomose, Doença de Chagas, uso do DDT); o nível de conhecimento dos funcionários dos setores; a disponibilidade de fontes de informação científica; a construção de uma rede/comunidade científica e a consolidação dos especialistas das áreas; as necessidades práticas enfrentadas pelos profissionais no exercício das atividades; a curiosidade científica, etc.

O último número do impresso foi editado em dezembro de 1956, reunindo os exemplares de setembro até o fim do ano. Esse fato assinala que, possivelmente, a publicação já não recebia muitas perguntas, motivo plausível para o encerramento da iniciativa. Durante a existência do boletim foram respondidas 104 questões, infelizmente sem referência dos requerentes e de suas instituições de origem. O que fica claro é que o informativo não era um mero veículo burocrático, e sim um canal de diálogo construído a partir das necessidades do público alvo, funcionando como uma “central” que complementava a formação dos técnicos em saúde. Eram as perguntas que definiam o conteúdo do impresso, e não a Instituição que escolhia, unilateralmente, os tópicos abordados. Os cientistas escalados para esclarecer as dúvidas precisaram adequar-se ao formato proposto, que exigia explicações curtas. No impresso, algumas respostas foram dadas em três linhas, as maiores raramente passavam de meia página. Tratava-se, portanto, de um desenho dinâmico, que se aproxima de propostas atuais de divulgação do conhecimento, buscando interligar cientistas com os diferentes públicos e suas demandas específicas. No caso do informativo “De Vocês para nós e de nós para vocês”, as respostas não eram a única fonte de informação, as perguntas enviadas pelos consulentes também eram catalisadoras do conhecimento, pois instigavam todos os envolvidos (pesquisadores, consulentes, leitores), a refletirem sobre os saberes e processos científicos.

 

Projeto Fiocruz Minas, patrimônio do Brasil: História, memória, ciência e comunidade.

Realização e financiamento: Presidência da Fundação Oswaldo Cruz (Vice-Presidência de Educação, Informação e Comunicação) e Instituto René Rachou.

Coordenador: Dr. Roberto Sena Rocha.

 

Texto de: Natascha Stefania Carvalho De Ostos – Historiadora

[1] Este texto é produto do Projeto Fiocruz Minas, patrimônio do Brasil: História, memória, ciência e comunidade, parceria institucional entre a Presidência da Fundação Oswaldo Cruz (Vice-Presidência de Educação, Informação e Comunicação) e o IRR, com financiamento de ambos. Os Boletins “De vocês para nós e de nós para vocês” encontravam-se no acervo da pesquisadora Alda Lima Falcão. A organização do material institucional e dos pesquisadores do IRR tem propiciado o achado de fontes que subsidiam a pesquisa histórica, resultando em produções como este texto.

[2] SANTOS, Paulo Roberto. Inovação em saúde e desenvolvimento nacional: origens, criação e atuação do Instituto de Malariologia (1946-1956). Revista Rio de Janeiro, n. 11, set.-dez. 2003, p. 13.

[3] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Apresentação. “De Vocês para nós e de nós para vocês”. Boletim consultivo-informativo do Instituto de Malariologia. Serviço Nacional de Malária. Belo Horizonte, n. 1, XII/1955, p. 1.

[4] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Nota da redação. “De Vocês para nós e de nós para vocês”. Boletim consultivo-informativo do Centro de Pesquisas de Belo Horizonte. Belo Horizonte, n. 5, IV/1956, p. 1.

[5] MINISTÉRIO DA SAÚDE. “De Vocês para nós e de nós para vocês”, n. 1, p. 2-3, XII/1955; n. 2, p. 5, I/1956; n. 8, p. 3-4, VII/1956.

[6] MINISTÉRIO DA SAÚDE. “De Vocês para nós e de nós para vocês”, n. 3, p. 1, II/1956; n. 7, p. 3, VI/1956; n. 9, p. 2, VIII/1956.

[7] MINISTÉRIO DA SAÚDE. “De Vocês para nós e de nós para vocês”, n. 2, p. 5, I/1956.