Manguinhos em Minas Gerais – Um panorama da criação da filial mineira do Instituto Oswaldo Cruz

Descrição das instalações da filial de Manguinhos em Belo Horizonte. In: VÉRAS, Felippe. Almanack, Guia de Bello Horizonte, ano II. Typ. Commercial: Belo Horizonte, 1913, p. 239. Acervo da Hemeroteca Pública de Minas Gerais

 

O Instituto René Rachou passou a integrar a estrutura da Fundação Oswaldo Cruz no ano de 1970. Contudo, Manguinhos esteve presente em Minas Gerais desde o início do século XX, ajudando a conformar o campo da saúde pública no estado. A hoje Fundação Oswaldo Cruz recebeu diversas denominações ao longo do tempo, mas a sua organização central permaneceu a mesma desde a sua criação como Instituto Soroterápico Federal, no ano de 1900. Popularmente conhecido como Manguinhos, nome da fazenda onde ficavam as instalações, o instituto trabalhava em ritmo frenético para atender as demandas da saúde pública nacional, especialmente no controle de doenças que causavam grandes transtornos, como a peste bubônica, a varíola e a febre amarela.

Oswaldo Cruz foi indicado pelo presidente Rodrigues Alves, em 1903, como Diretor-geral da Saúde Pública, com a missão de implantar uma reforma sanitária capaz de transformar a face mais visível do país, cuja insalubridade ceifava vidas, causava prejuízos econômicos e danos à imagem do Brasil no exterior.[1] O sucesso alcançado pela atuação de Oswaldo Cruz no combate de endemias no Rio de Janeiro franqueou-lhe mais apoio político e recursos para expandir a sua rede de ação. Mas nem por isso seu trabalho deixou de ser contestado, e quando do fim do mandato de Rodrigues Alves alguns vislumbraram a oportunidade de afastar o cientista da direção da Saúde Pública. Articulações políticas tentaram convencer o novo presidente eleito, o mineiro Afonso Pena, a escolher outro nome para a pasta: “É sabido que quatro pessoas foram a Minas Gerais pedir aos srs. Bias Fortes e Henrique Diniz para intervirem com o sr. Afonso Pena afim deste não conservar no cargo de diretor da saúde pública o sr. Oswaldo Cruz. A resposta foi negativa, pois o sr. Afonso Pena está firmemente resolvido a conservar aquele funcionário”.[2] É preciso recordar que Afonso Pena foi eleito para o cargo de chefe do executivo em março de 1906, mas só tomou posse em novembro, de modo que ao longo desse tempo especulava-se sobre os nomes que ocupariam os cargos no novo governo. Em maio desse mesmo ano já estavam em curso as conversações para a instalação de um braço de Manguinhos em Minas Gerais, “A instalação de um instituto filial ao de Maguinhos nesta Capital, como está resolvido pelo Governo Federal, virá prestar inestimável serviço à indústria pastoril do Estado”.[3] A eleição de um presidente mineiro certamente solidificou a escolha do estado para abrigar a primeira sucursal do instituto, em um acordo que envolveu tanto o governo estadual como o federal. A manutenção de Oswaldo Cruz no cargo de diretor da Saúde Pública por Afonso Pena selava os bons termos entre setores da elite política mineira e Manguinhos.

No dia 03 de agosto de 1907 foi inaugurado o “Instituto Serumtherapico, filial do de Manguinhos, sob a direção do Dr. Ezequiel Dias”.[4] As denominações do instituto eram variadas, sendo citado também como “Instituto Vaccinogenico Oswaldo Cruz”.[5] Localizado na Praça da Liberdade, as instalações eram originalmente utilizadas como almoxarifado da Força Pública, de modo que precisaram passar por reformas para se adaptarem às novas funções. O arquiteto Luiz de Morais, responsável pelo conjunto de edificações de Manguinhos, foi designado para efetuar a obra.[6] O local escolhido para o instituto possuía forte carga simbólica, situado no centro do poder político do estado de Minas Gerais, o que conferia prestígio ao empreendimento. O fluminense Ezequiel Dias, graduado em farmácia e medicina, foi indicado como diretor, sendo homem de confiança de Oswaldo Cruz, tanto pela sua capacidade científica como pela experiência de gestão.

 

Notícia sobre a inauguração da filial de Manguinhos em Belo Horizonte. In: Diário de Notícias, 04 de agosto de 1907, n. 140, ano I, p. 1. Belo Horizonte. Acervo da Hemeroteca de Minas Gerais.

 

 

As instalações do centro eram modestas, e Amilcar Vianna Martins assim descreveu alguns elementos da disposição arquitetônica da sede, “A entrada principal para o público, era pela rua da Bahia, chegando-se a um pequeno saguão, onde estavam os armários, com parte da coleção de cobras, escorpiões, peças anatômicas. À direita ficava o gabinete do Diretor e à esquerda a biblioteca. Seguia-se um grande salão, onde se viam, em gaiolas de vidro, várias surucutingas ou surucucus-pico-de-jaca, vindas do Rio Doce […]. Para o salão abriam-se as portas dos laboratórios de microbiologia, micologia, ofidismo, raiva, varíola e de meios de cultura”.[7]

Mesmo diante das restrições orçamentárias, a inauguração da filial foi concorrida e prestigiada por diversas autoridades. Porém, isso não significava que as atividades científicas ali desenvolvidas estavam livres de tensões e interferências políticas. No dia da cerimônia de abertura, um pequeno incidente entre Borges da Costa e o governador João Pinheiro marcou as festividades. De acordo com Amilcar Martins: “me foi contado pelo próprio professor Borges: o Presidente do Estado, convicto positivista e, portanto, contestador das doutrinas de Pasteur, repentinamente e em tom alto e sarcástico indaga: “Afinal, Dr. Borges, o que é a imunidade?”, Borges da Costa […] retrucou imediatamente: “Lamento, Senhor Presidente, não poder, em poucas palavras, explicar o que é imunidade a um leigo, como Vossa Excelência”.[8] À primeira vista esse episódio pode parecer uma simples anedota, mas ele indica a existência de discordâncias, no meio político e intelectual da época, quanto ao projeto científico capitaneado pelos cientistas de Manguinhos. É importante recordar que os positivistas foram contra a vacina obrigatória na campanhas sanitárias ocorridas no Rio de Janeiro, e que culminaram com a Revolta da Vacina, em 1904. Questionava-se não apenas a eficácia da inoculação, como a restrição à liberdade individual, pelo caráter compulsório da vacinação. Nesse momento os positivistas, e seus simpatizantes, ocupavam postos chaves na estrutura de poder, como políticos, militares, médicos e cientistas. Não é de se estranhar, portanto, que esse episódio não tenha sido o primeiro, e nem o último, a opor o projeto do instituto mineiro com segmentos da elite do estado. O incidente também aponta para o embate entre duas forças de autoridade, o poder científico e o político. Como resposta à pergunta intempestiva de João Pinheiro, Borges da Costa rebateu afirmando a sua própria posição de autoridade no campo científico, diante da qual nem mesmo o governador poderia se sobrepor. Ao longo dos anos ocorreram outros atritos entre os dirigentes da filial de Manguinhos em Minas Gerais e grupos burocráticos e políticos estaduais.

Assim, para justificar a sua existência, o instituto precisava dar respostas efetivas aos problemas de saúde pública da região, assumindo tarefas bastante ecléticas. O desafio inicial era desenvolver uma vacina contra a chamada “peste da manqueira” (carbúnculo sintomático), que dizimava o gado e trazia grandes prejuízos econômicos à atividade pecuária. Após alguns ajustes nos testes que já ocorriam em Juiz de Fora desde 1906, a vacina, criada por Alcides Godoy, passou a ser comercializada em larga escala a partir de 1908, com grande sucesso.[9] Mas as pesquisas não se restringiam às epizootias, sendo desenvolvidas investigações sobre o “tifo exantemático, micologia médica e a distribuição geográfica dos triatomíneos”[10], além da ênfase no escorpionismo, que causava muitas mortes no estado. No ano de 1918 cria-se o Posto Antiofídico, com o intuito de lidar com a problemática dos escorpiões e das cobras, sendo edificado um serpentário que, aberto à visitação pública, passou a ser uma atração da capital. Foi estabelecida uma parceria entre o centro mineiro e o Instituto Butantã; o primeiro coletaria o veneno das cobras, e o segundo, recebendo o material, devolveria o soro pronto. Posteriormente o convênio passou para o Instituto Vital Brasil.

A filial de Manguinhos em Minas Gerais se constituiu como um polo aglutinador dos cientistas do estado, com interação muito próxima com a Faculdade de Medicina, criada em 1911. De acordo com Amilcar Vianna, Ezequiel Dias passou a “recrutar entre os estudantes, seus primeiros auxiliares, como Aroeira Neves, Eugenio Silva, Oswaldo de Mello Campos”.[11] Apesar da restrição orçamentária, o instituto possuía a melhor biblioteca científica do estado, e ali se reuniam pesquisadores e professores para debater, uma vez por semana, as novidades e os avanços científicos. Contudo, os confrontos entre a administração estadual e o instituto não deixaram de ocorrer. No ano de 1917 uma crise se abateu sobre o centro quando, sob a suspeita de uma epidemia de difteria, a reputação do instituto foi colocada em xeque pelo próprio diretor dos Serviços de Higiene do Estado, que questionou a precisão dos exames feitos pela unidade. Tratava-se não apenas de uma disputa em torno de um caso concreto, como também de uma oportunidade para os descontentes com o protagonismo do centro contestar a sua legitimidade. Nessa ocasião, Carlos Chagas, já diretor do Instituto Oswaldo Cruz, precisou deslocar-se até Minas Gerais para contornar a situação e evitar que Ezequiel Dias deixasse o cargo.[12]

Pouco tempo depois, no ano de 1922, falece Ezequiel Dias, e em homenagem a esse grande cientista o centro passou a denominar-se Instituto Ezequiel Dias. A direção foi assumida pelo médico Octavio Magalhães, que já havia trabalhado na unidade. Sob a sua gestão o instituto reforçou o serviço antiofídico, mas as pesquisas continuaram em diversos setores, com a ampliação da Seção anti-rábica, e com a fabricação de produtos, como: “Sulfato de cobre (tratamento da febre aftosa); Vacina contra o “mal triste das aves” (tifose aviária); Soluto de urotropina (para o epitelcoma contagioso das aves)”, etc.[13] Mas, apesar do sucesso e do alcance das realizações do centro, existiam muitos problemas a serem enfrentados, como a questão do parco orçamento e as constantes oposições de alguns setores da saúde pública estadual. Na tentativa de dirimir essas contendas surge a ideia de estadualizar o Instituto Ezequiel Dias, o que em tese daria maior autonomia em questões de financiamento, e simbolicamente o centro passaria a ser uma organização totalmente mineira. Amilcar Martins afirma que Carlos Chagas foi contra, mas acabou convencido pela insistência de Octávio Magalhães, que considerava a proposta uma saída viável para os problemas da instituição.[14] O projeto concretizou-se por meio de lei, no dia 13 de novembro de 1936, momento em que Instituto Ezequiel Dias desvincula-se do Instituto Oswaldo Cruz.

Durante o tempo em que o centro funcionou como filial de Manguinhos em Minas Gerais, ele revolucionou o ambiente científico do estado, congregando pesquisadores de várias partes do país, criando uma comunidade científica que encontrou na instituição um porto seguro para alavancar pesquisas e outros projetos institucionais, e desenvolvendo ações de saúde pública que conquistaram a confiança da população. Foi principalmente a partir do marco da fundação da filial de Manguinhos no estado, com seu prestígio e credibilidade, que o campo científico mineiro adquiriu autonomia.

 

Projeto Memória. Trajetória histórica e científica do Instituto René Rachou – Fiocruz Minas.

Coordenadores: Dr.ª Zélia Maria Profeta da Luz; Dr. Roberto Sena Rocha.

Historiadora: Dr.ª Natascha Stefania Carvalho De Ostos.

 

Texto de: Natascha Stefania Carvalho De Ostos – Doutora em História

 

[1] BENCHIMOL, Jaime L. (org.). Manguinhos do sonho à vida. A ciência na Belle Époque. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, 1990, p. 23.

[2]  De A Platéa, de S. Paulo. O Pharol, Juiz de Fora, Minas Gerais, 08 nov. 1906, n. 264, p. 1.

[3] Mensagem do Governador de Minas Gerais para Assembleia. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1906, p. 71.

[4] Belo Horizonte, 3. O Paiz, Rio de Janeiro, n. 80.340, 04 ago. 1907, p. 2.

[5] Anuário de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1907, p. 83.

[6] OLIVEIRA, Benedito Tadeu de. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Minas Gerais Reflexões sobre a nova sede. Arquitextos, n. 165.01, ano 14, fev. 2014.

[7] Conferência proferida pelo professor Amilcar Vianna Martins em 10 de outubro de 1988, no Instituto Ezequiel Dias. In: MARTINS, Amilcar Vianna Martins; MARTINS, Beatriz Borges. Amilcar Vianna Martins: um cientista mineiro, 1907-2007. Belo Horizonte, 2007, p. 51.

[8] Idem, p. 52.

[9]D’AVILA, Cristiane. Peste da Manqueira. Disponível em: <http://brasilianafotografica.bn.br/?tag=peste-da-manqueira>, jun. 2018.

[10] BENCHIMOL, Jaime L.., ibidem, p. 41.

[11] MARTINS, Amilcar., ibidem, p. 52.

[12] CHAVES, Bráulio Silva. O Instituto Ezequiel Dias e a construção da ciência em um “horizonte” de modernidade (1907-1936). Dissertação de mestrado. Departamento de História da UFMG. Belo Horizonte, 2007, p. 80-83.

[13] Idem, p. 97-98.

[14] MARTINS, Amilcar., ibidem, p. 59.