Wladimir Lobato Paraense

LobatoParaense

Wladimir Lobato Paraense Imagem: Agência Fiocruz de notícias

 

 

O escritor Ítalo Calvino, ao discorrer sobre as novas realidades que se apresentam diante do ser humano, faz a seguinte reflexão: “nossos olhos e nossas mentes estão habituados a escolher e a catalogar apenas aquilo que entra nas classificações assentadas. Talvez um Novo Mundo se abra aos nossos olhos todos os dias e não o vejamos”.[1] Tal reflexão nos leva a pensar sobre a trajetória científica do pesquisador Wladimir Lobato Paraense, que em quase cem anos de vida, muitos dos quais dedicados à ciência, manteve a mente aberta para enxergar um “novo mundo” em todas as questões que investigava.

Não por acaso, o jovem Lobato, nascido em Igarapé-Mirim, Pará, no ano de 1914, gostava de ler as obras de Julio Verne, que descortinavam mistérios espaciais e aventuras no fundo do mar.[2] Com apenas 16 anos de idade, Lobato Paraense começou a cursar medicina, em 1931, na Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, onde permaneceu até 1934. Em busca de melhores condições de estudo, transferiu-se para a Faculdade de Medicina do Recife, concluindo o curso no ano de 1937.[3] Logo em seguida, em 1938, o médico recebeu uma bolsa para especializar-se em Anatomia Patológica na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.[4] Ali ele começou pesquisas sobre a esquistossomose, mas já em 1939 concentrou seus estudos no campo da leishmaniose visceral, quando assumiu vaga no Instituto Oswaldo Cruz (IOC), no Rio de Janeiro, onde permaneceu como contradado extranumerário, até passar em concurso em 1945. Ali ele organizou o laboratório de patologia do Serviço de Estudos das Grandes Endemias (SEGE).[5] Trabalhando na área de protozoonoses, o médico foi “o primeiro pesquisador a comprovar a existência do ciclo exoeritrocitário da malária (em que o parasita sobrevive fora da hemácia), em 1943”.[6] Foi então que, a pedido de Henrique Aragão, diretor do IOC, passou uma temporada de dois anos em Belo Horizonte, investigando casos de pênfigo foliácio, doença de pele conhecida como fogo selvagem. Na capital mineira, Lobato realizou pesquisas paralelas, estudando planorbídeos, vetores da esquistossomose. Fazendo longas caminhadas pela cidade, principalmente nos arredores do Ribeirão Arrudas,[7] ele conseguiu mapear 44 criadouros.[8]

Lobato Paraense retornou para o Rio de Janeiro, mas em 1950 foi designado, pelo diretor do IOC, Olympio da Fonseca Filho, para voltar a Belo Horizonte, e trabalhar com Octávio de Magalhães, professor da Faculdade de Medicina de Minas Gerais. Em instalações da faculdade, ele desenvolveu trabalhos sobre leishmaniose, até que, em 1953, foi convidado pelo Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), a liderar uma equipe de pesquisa que se dedicaria ao estudo da esquistossomose, visando mapear e distinguir espécies de planorbídeos transmissoras da doença. Com a aprovação do IOC, o médico realizou essas investigações até 1956, concluindo pela “unicidade do gênero e pela existência de cinco espécies, sendo três vetoras e duas não vetoras”.[9] A partir de então desenvolveu gosto pela classificação de caramujos, tendo percorrido vários países em busca de novos exemplares, prestando grande contribuição científica na diferenciação das espécies, tendo identificado dez novas,[10] pois sua abordagem “era inovadora para a época ao reunir genética, evolução, zoogeografia, ecologia e comportamento”.[11] Tendo em vista o sucesso da pesquisa, Lobato recebeu a visita dos cientistas José Pellegrino, Zigman Brener e Giorgio Schreiber, propondo, em nome de Amilcar Viana Martins, diretor do Instituto Nacional de Endemias Rurais (INERu), que ele permanecesse na capital mineira, trabalhando no Centro de Pesquisas de Belo Horizonte (CPBH), hoje Instituto René Rachou (IRR). Suas pesquisas também chamaram a atenção de cientistas estrangeiros, que recomendaram seu trabalho à Fundação Rockefeller, levando a Instituição, juntamente com outros órgãos nacionais, a financiar seu trabalho.

Entre 1961 e 1963,[12] Lobato Paraense foi diretor do INERu, posição que o ajudou a articular parcerias com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), para a criação de um Centro de Identificação de Planorbídeos para as Américas, no seu laboratório. Em 1968, Lobato mudou-se de Belo Horizonte para a capital federal, a convite do reitor da Universidade de Brasília (UNB), para assumir a organização do Instituto Central de Biologia, onde se tornou professor titular. No ano de 1976, o cientista voltou a trabalhar no IOC, no Rio de Janeiro. Um dos fatores que contou para sua decisão de retornar à Fiocruz, foi a oferta do presidente da Instituição, Vinícius Fonseca, de que Lobato pudesse morar nas dependências do campus, na hoje chamada Casa Amarela. O cientista ficou animado pelo fato de viver perto do seu laboratório.[13] Lobato assumiu, de 1976 a 1978, o cargo de vice-presidente de pesquisa da Instituição. Ali também foi coordenador do Departamento de Malacologia, entre 1980 e 1991; após 1991 passou a chefiar o Laboratório de Malacologia.

Sua experiência administrativa como diretor do INERu e vice-presidente de pesquisa da Fiocruz, conferiu-lhe uma visão abrangente das políticas públicas de fomento para a ciência nacional. Ele apontava a carência de aparelhagem moderna para os laboratórios – que acompanhasse os avanços da tecnologia –, e das dificuldades burocráticas para importação de equipamentos, periódicos científicos e insumos. Segundo Lobato, “viver de importação limita todo o desenvolvimento científico”, e o “hiato tecnológico” acabava determinando o tipo de pesquisa desenvolvido no país, já que os cientistas não podiam se dedicar a aspectos investigativos que exigissem muita sofisticação da aparelhagem. Na opinião dele, um laboratório bem equipado também ajudava a atrair pesquisadores de excelência para as instituições.[14]

Lobato Paraense foi pesquisador titular da Fiocruz, exerceu a docência na UNB e em cursos de pós-graduação em parasitologia na UFMG, USP, além de atuar em universidades estrangeiras, como na Universidad de Los Andes, Venezuela, Escuela de Salud Publica, México.[15] Ele recebeu cerca de 28 distinções, entre medalhas, prêmios e homenagens, dentre os quais: “os prêmios Golfinho de Ouro, do Governo do Estado do Rio de Janeiro, em 1982; Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz, em 1985; e ainda foi eleito Man of the Year 1997, pelo American Biographical Institute, dos Estados Unidos, e condecorado com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico, em 1995”;[16] no ano de 2004 o Instituto René Rachou atribuiu o nome de Lobato Paraense ao moluscário da Instituição. O cientista foi autor de 160 trabalhos científicos e deixou uma imensa contribuição nas áreas de protozoologia, fauna malacológica e relações moluscos-parasitos.[17]

Com toda essa bagagem acadêmica, Lobato nunca perdeu de vista as questões sociais envolvidas na disseminação das doenças parasitárias, lição que ele aprendeu na convivência com pessoas atingidas pelas patologias. Em entrevista concedida a jornal, o pesquisador conta que: “vi uma dona de casa de um subúrbio de Belo Horizonte aproximar-se de um córrego, lavar-se, e depois encher uma lata d’água. Disse-lhe que não devia utilizar aquela água, porque estava contaminada pelos caramujos. Sem se abalar, a mulher respondeu que sabia disso mas, “o que posso fazer, pois não tenho recursos para fazer um poço”. – Então, a senhora deve pelo menos ferver a água antes de usá-la – sugeriu o professor. – E a lenha e o carvão. Como arranjo? – Insistiu a mulher. O professor entende que não adianta educar, simplesmente, o indivíduo […] Com saneamento, é válida a educação”.[18] O cientista compreendeu que a educação e a ciência eram fundamentais, mas tinham seus limites caso não se investisse em melhorias sociais, que garantissem condições básicas de saúde.

Lobato Paraense faleceu no ano de 2012, com 97 anos de idade. Trabalhou até o fim da sua vida, mantendo o entusiasmo e a curiosidade que lhe permitiram descobrir “novos mundos”, deixando um legado extraordinário para a ciência.

 

 

Projeto Memória. Trajetória histórica e científica do Instituto René Rachou – Fiocruz Minas.

Coordenadores: Dr.ª Zélia Maria Profeta da Luz; Dr. Roberto Sena Rocha.

Historiadora: Dr.ª Natascha Stefania Carvalho De Ostos.

 

Texto de: Natascha Stefania Carvalho De Ostos – Doutora em História

 

 

[1] Como era novo o novo mundo. In: Coleção de areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, s./p..

[2] VALVERDE, Ricardo. A vida e a carreira do pesquisador Wladimir Lobato Paraense. Agência Fiocruz de Notícias. Disponível em: <https://agencia.fiocruz.br/vida-e-carreira-do-pesquisador-wladimir-lobato-paraense>.

[3] KATZ, Naftale. Wladimir Lobato Paraense, an outstanding scientist (1914†2012). Obituary/Necrológio. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, 45(3):421, may-jun, 2012.

[4] VALVERDE, Ricardo. Próxima parada, São Paulo. Agência Fiocruz de Notícias. Disponível em: <https://agencia.fiocruz.br/proxima-parada-sao-paulo>.

[5] FGV. CPDOC. História da Ciência no Brasil: acervo de depoimentos. Rio de Janeiro: FINEP, 1984, p. 200.

[6] VALVERDE, Ricardo. A descoberta do ciclo exoeritrocitário da malária. Agência Fiocruz de Notícias. Disponível em: <https://agencia.fiocruz.br/descoberta-do-ciclo-exoeritrocitario-da-malaria>.

[7] LIMA, Lais Clark Ribeiro de. Biologia Básica e Saúde Pública: evolução do conhecimento dos planorbídeos neotropicias. Tese de doutorado. Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública. Rio de Janeiro, 1997, p. 42.

[8] SCHALL, Virgínia. Wladimir Lobato Paraense. In: Contos de fatos. Histórias de Manguinhos. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2001, p. 26.

[9] LIMA, Lais Clark Ribeiro de. Ibidem, p. 44.

[10] FIOCRUZ. Instituto Oswaldo Cruz. Personalidades. Wladimir Lobato Paraense. Disponível em:

<http://www.fiocruz.br/ioc/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=206&sid=77>.

[11] VALVERDE, Ricardo. Os planorbídeos e o reconhecimento internacional. Agência Fiocruz de Notícias. Disponível em: <https://agencia.fiocruz.br/os-planorbideos-e-o-reconhecimento-internacional>.

[12] FGV. CPDOC. História da Ciência no Brasil. Ibidem, p. 200.

[13] VALVERDE, Ricardo. Ecce homo’. Agência Fiocruz de Notícias. Disponível em:

<https://agencia.fiocruz.br/ecce-homo>.

[14] PARAENSE, Wladimir Lobato. Entrevista concedida ao CPDOC/FGV. Entrevistadoras: MARIANI, Maria Clara; ARIELA, Márcia Bandeira de Mello Leite. Segunda entrevista, fita n. 2, lados 1 e 2, Jul./ago. 1977, s/p..

[15] ACB. Membros da Academia Brasileira de Ciências. Wladimir Lobato Paraense. Disponível em:

< http://www.abc.org.br/membro/wladimir-lobato-paraense/>.

[16] FIOCRUZ. Instituto Oswaldo Cruz. Personalidades. Wladimir Lobato Paraense. Ibidem.

[17] ACB. Membros da Academia Brasileira de Ciências. Wladimir Lobato Paraense. Ibidem.

[18] UB verifica se caramujos do Arizona podem transmitir esquistossomose. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, n. 95, 28 jul. 1969, p. 25.