*
As crises sanitárias consequentes das grandes epidemias e pandemias dos séculos XX e XXI guardam muitas semelhanças entre si. Elas promovem ora convergência ora confronto entre duas das mais influentes ações sociais organizadas: a ciência e a polÃtica. Como qualquer evento de grande impacto social, as doenças são matéria da polÃtica, tanto no sentido da ação pública voltada à disputa de poder, como a ação pública coordenada em resposta à s demandas sanitárias e sociais que criam. É preciso que haja um acordo mÃnimo para que o primeiro conceito de polÃtica não inviabilize o segundo.
Nas crises sanitárias, estão sempre presentes em alguma medida: mobilização de pessoas e meios, informação, evidências cientÃficase algum nÃvel de restrição. A medida de sucesso é uma só: articular a melhor capacidade existente para a maior redução possÃvel dos danos.
A pandemia de Covid-19 impôs um grande desafio para todo o planeta. Déficits históricos dos sistemas de saúde, agravados por recentes polÃticas de austeridade fiscal, redução do investimento público em pesquisa e desenvolvimento, enfraquecimento das instâncias de governança globais e regionais, confiança reduzida entre os paÃses, e entre nÃveis diversos de governo no interior dos paÃses. Quase todos estes fenômenos estão no domÃnio da polÃtica, mas todos têm grande impacto sobre a atividade cientÃfica.
Têm-se saÃdo melhor os que conseguiram mobilizar as capacidades existentes, através de uma liderança polÃtica efetiva. Têm fracassado os que: insistem na falsificação da gravidade do quadro, fazem promessas irrealizáveis, promovem o misticismo da imunidade e da cura, exortam um evitável sacrifÃcio alheio, e por inépcia permitem que os serviços de saúde se esgotem ao ponto de se produzir um excedente de mortes pela Covid-19 e pelas emergências não atendidas provocadas por outras doenças.
Crises lançam também desafios à inteligência humana e a sua capacidade de superação. Neste momento, em muitos paÃses, temos assistido, tanto na ciência como na polÃtica, flexibilidade e cooperação, solidariedade, criatividade, maior investimento em pesquisa, e aumento da percepção social sobre ciência e polÃtica pública.
No Brasil, carecemos de um acerto maior entre a polÃtica e a ciência. Como consequência, fomos derrotados no combate à 1ª onda da pandemia. Pelo lado da ciência, observamos um grande engajamento da comunidade cientifica na produção de conhecimento e no esforço sincero de mitigação da pandemia e de fortalecimento do cuidado das populações afetadas. Já no âmbito polÃtico, observamos a soma de muitos defeitos contemporâneos, que desenharam o desastre do momento. A aversão à polÃtica, aos partidos e à s instâncias polÃticas; a ausência de planejamento, coordenação e senso de responsabilidade pública; a desinstitucionalização como projeto e a desinformação como método. Tudo isto nos coloca frente a uma encruzilhada. Estamos há muito tempo em um isolamento social mal executado, mas poucos municÃpios possuem condições de passar a flexibilização com alguma segurança.
Como consequência, o paÃs apresenta nÃveis diversos de flexibilização fundados muitas vezes no Ãmpeto de se retornar à s atividades econômicas, sem se levar em conta as consequências sanitárias envolvidas. No presente, podemos encontrar em todo o paÃs uma tipologia vária de redução de mobilidade praticada: em isolamento social precário, em lockdown, em fase inicial de flexibilização, em fase avançada de flexibilização e em retorno ao isolamento social, após uma flexibilização que implicou um aumento considerável dos numero de casos, hospitalizações e óbitos.
Precisamos rapidamente dar curso a um paÃs que, se não está à deriva, luta de forma desorganizada contra a 1ª onda da pandemia. É preciso retornar ao momento inicial de maior articulação entre os vários nÃveis da administração pública. É preciso que se adote parâmetros racionais para definir os tipos e estágios de isolamento a ser adotados. É preciso que se vá além da retórica vazia, de invocar a ciência como medida de certeza, quando não se dispõe de indicadores confiáveis, vigilância epidemiológica organizada e retaguarda apropriada dos serviços de saúde. É preciso que atores polÃticos fundamentais busquem a conciliação com a ciência, para que a ciência possa ajuda-los fazer o que é por dever a sua parte.
*Texto escrito por Rômulo Paes– Pesquisador da Fiocruz Minas
***
Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.