Dia Mundial da Água: Se a tendência global é remunicipalizar o saneamento, por que o Brasil insiste em privatizar?

11818imagemchamada

O Dia Mundial da Água, 22 de março, é um momento excelente para abordar os rumos do abastecimento de água e do esgotamento sanitário no país e no mundo.

Se o boom internacional da privatização ocorreu entre as décadas de 1980 e 1990, agora estamos testemunhando uma reversão desse processo. O mundo caminha na direção contrária, com a remunicipalização de sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário ocorrendo em diversos países.

Desde o ano 2000 até 2019, mais de 300 cidades em todo o mundo reverteram a privatização da gestão do saneamento, seja não renovando contratos de concessão ou rompendo-os antes do término. Esses processos estão acontecendo de forma generalizada em diversos países e em praticamente todos os continentes.

Cidades emblemáticas, como Paris, Berlim, Budapeste e Atlanta já remunicipalizaram o abastecimento de água. Na América Latina, Buenos Aires, La Paz e Cochabamba, igualmente, desfizeram a privatização. Estados Unidos e na França (onde Lyon, Nice e Bordeaux estão em fase de re-municipalização) concentram parte importante dos casos de reversão.

O Reino Unido, por sua vez, enfrenta uma grave crise no setor. Nos anos 1980 e 1990, o país foi dividido em dez regiões e a propriedade dos ativos entregue a dez empresas licitadas (aliás, modelo semelhante ao adotado no Rio de Janeiro e em Alagoas).

Os britânicos queixam-se, atualmente, dos salários escandalosos das cúpulas das companhias privadas que gerem o setor e das transferências bilionárias de lucros, em contraponto a investimentos baixíssimos, aumentos exagerados de tarifas, poluição dos cursos d’água e falta de cuidados ambientais no sistema de esgotos.

Passos largos

Enfim, tudo isso para dizer que surpreende a insistência do Brasil em perseguir um modelo que se revelou inadequado em nível global. Somos o único país do mundo que continua a promover a transferência dos serviços de saneamento para a iniciativa privada em escala nacional.

Com ritmo e projetos distintos, muitos Estados brasileiros estão dando passos largos rumo à redução ou eliminação da presença do governo na gestão do saneamento.

O Rio Grande do Sul, por exemplo, vendeu recentemente a sua companhia estadual. Já o Ceará fez uma modelagem que transfere parte dos sistemas para a inciativa privada, ainda que mantendo um certo controle público.

Em Minas Gerais, o governador se esforça para excluir da Constituição Estadual a exigência de um referendo público sobre a privatização do saneamento, para aderir aos moldes propostos pelo governador de São Paulo.

Ainda que no Brasil estejam sendo mobilizados argumentos como a necessidade de atrair recursos privados porque “o governo está falido” e existe uma crise fiscal, a experiência internacional de décadas comprova amplamente que quando se privatiza, o dinheiro privado não chega de forma importante.

A prática global evidencia que a tendência das empresas privadas no saneamento é a maximização dos lucros. A literatura produzida a esse respeito nas últimas décadas descreve que o modelo resulta na compressão de investimentos, aumento de tarifas e transferência do máximo de resultados aos acionistas. Pressões sobre reguladores para garantir a manutenção do monopólio estão inclusas nesse pacote.

Em um breve retrospecto, o modelo brasileiro ainda predominante no setor começou a ser desenhado na década de 1970, quando houve uma reforma radical, por meio do Plano Nacional de Saneamento (Planasa). Criado durante a ditadura militar, mais especificamente em 1967, o plano foi muito criticado porque seguiu uma linha da centralização dos serviços. Ao mesmo tempo, privilegiou a gestão pública e a criação de companhias estaduais de abastecimento.

A gestão manteve-se basicamente pública até meados dos anos 1990, quando o conhecido Consenso de Washington (EUA) fortaleceu o modelo neoliberal de organização das sociedade e passou a incentivar a participação privada na gestão dos bens públicos, como a água, a partir da ideia do Estado Mínimo.

O então presidente Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) tentou emplacar uma legislação para aumentar a participação privada e chegou a firmar um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) comprometendo-se com a privatização do saneamento, mas nada saiu do papel.

É interessante destacar como esses movimentos atuais vêm reconfigurando o saneamento no Brasil. Até o final dos anos 2010, a participação da iniciativa privada no setor equivalia aproximadamente a apenas 10% dos domicílios atendidos. Experiências como as parcerias público-privadas (PPP) e o aumento da compra de ações das empresas estaduais de saneamento também ocorriam em Estados como São Paulo, Minas Gerais e Paraná, concomitantemente com a privatização de alguns municípios em estados como o Rio de Janeiro e Espírito Santo.

O movimento para incrementar a onda de privatização teve lugar no governo Michel Temer (2016-2019), que chegou a preparar uma medida provisória com essa finalidade. A iniciativa não chegou a ser votada por parlamentares e foi retomada e aprovada no governo Bolsonaro (2019-2022), com apoio dos presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados.

A Lei 14.026, aprovada em julho de 2020, induz a privatização por diversos mecanismos. Um deles promove a gestão privada não apenas de um município, mas regionalmente, em conjuntos de municípios. A intenção é regionalizar os serviços e licitá-los por regiões.

Há dois casos bastante emblemáticos dessa lógica. O primeiro deu-se na cidade do Rio de Janeiro, que foi dividida em quatro regiões, sendo que cada quarto da capital foi incorporado a uma das regiões do Estado. Isso foi seguido de licitações que resultaram em quatro prestadores privados no Estado. O estado de Alagoas fez algo semelhante. Todas essas situações envolvem licitações que concedem a operação dos serviços por 35 anos.

Desdobramentos conhecidos

A proposta de privatização que avança na Assembleia Legislativa de São Paulo é diferente. Ela visa transferir a propriedade da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), a maior empresa da América Latina no setor de saneamento ambiental. O que se pretende é que o governo estadual, que tem pouco mais de 50% das ações da companhia, venda parte substancial das suas ações e a empresa passe, assim, a ter maioria de capital privado.

Embora seja apresentada como uma solução simples para melhorar o abastecimento, a privatização da companhia paulista será um processo complicado. A legislação determina que os municípios abastecidos terão de concordar em ser atendidos por uma companhia com nova composição acionária, inclusive com envolvimento das câmaras municipais.

Ainda que o atual governador paulista esteja apostando que conseguirá apoio para a venda das ações em poder do Estado, há vários focos de resistência por parte da sociedade civil e de parlamentares com perspectiva progressista.

O momento inspira muita preocupação. Infelizmente, o governo eleito não tem conseguido reverter o fomento à privatização do setor patrocinado pelo presidente anterior. Não só isso, como bancos públicos do porte do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES têm apoiado e financiado projetos de empresas privadas de saneamento e elaborado estudos para modelar novas privatizações no setor.

É possível imaginar os desdobramentos se o país mantiver essa disposição privatista. Os investidores privados não irão atuar para reduzir as profundas desigualdades do setor. Parcela significativa da população seguirá apartada de seus direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário, o que resulta em baixa dignidade e de qualidade de vida.

Da mesma forma, são amplamente conhecidas as consequências da falta de acesso aos serviços de saneamento, com impacto direto na saúde das populações e no ambiente.

A tendência global de remunicipalização do abastecimento documenta fartamente que o saneamento não pode ser tratado como oportunidade de negócio. Deve ter o status de uma política pública prioritária.

Autor: Léo Heller

O artigo foi publicado originalmente no site The Conversation (22/3/2024)

Léo Heller coordena o grupo de pesquisas em Políticas Públicas e Direitos Humanos em Saúde e Saneamento da Fiocruz Minas. Foi relator especial dos Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário da Organização das Nações Unidas entre 2014 e 2020.