Ouro Preto, uma das cidades históricas mais conhecidas do país, está acostumada a ser palco para apresentações artísticas, culturais e religiosas, mas, há cerca de cinco anos, passou a ser, também, o cenário para manifestações contra a privatização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Desde 2019, quando a prefeitura assinou um contrato com uma empresa privada, a Saneouro, para a prestação desses serviços, a população deu início a uma série de protestos, que visam fazer com que o poder público retome essas atividades. A intensa mobilização popular chamou a atenção do grupo Políticas Públicas e Direitos Humanos em Saúde e Saneamento, da Fiocruz Minas, que decidiu investigar as razões desse movimento, por meio de um estudo que se propôs a identificar e compreender as representações sociais elaboradas e partilhadas pelos moradores de Ouro Preto em relação à água e as possíveis influências dessas representações na rejeição aos serviços privados.
“A reação das pessoas em Ouro Preto em relação à privatização nos chamou a atenção porque outros municípios já privatizaram serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário e não temos conhecimento de ter havido uma manifestação contrária tão intensa. Foi por isso que resolvemos tentar entender essa relação que as pessoas têm com a água em Ouro Preto, de forma a compreender se isso influenciou nessa rejeição, que já dura quase cinco anos. Ainda hoje, as pessoas refutam a privatização e pedem a remunicipalização dos serviços”, explica Natália Onuzik, que esteve à frente da pesquisa por meio do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Fiocruz Minas, sob orientação do pesquisador Léo Heller e da pesquisadora Celina Modena.
Para fazer o estudo, a equipe de pesquisa entrevistou, entre os meses de agosto e dezembro de 2022, moradores naturais de Ouro Preto, com idades entre 26 e 90 anos. Foram realizadas entrevistas abertas, guiadas por um roteiro semiestruturado. Os dados coletados foram submetidos à Análise de Conteúdo temática e interpretados à luz da abordagem processual da Teoria das Representações Sociais e do arcabouço dos Direitos Humanos à Água e ao Esgotamento Sanitário. Os resultados mostraram que as representações sociais da água para a população de Ouro Preto apresentam-se ancoradas nas histórias de vida das pessoas e na própria história da cidade, bem como em elementos de fé e religiosidade, sendo estruturantes do caminho de lutas dos moradores. De acordo com o estudo, a água de Ouro Preto é parte integrante de um território, histórias e modos de vida, bases de uma identidade cultural e de representações sociais específicas.
“Em todas as entrevistas, as pessoas disseram que água é vida, no sentido de manutenção da vida humana e dos demais seres vivos. Algumas pessoas fizeram alusão a divindades para falar da água, ou seja, a água de Ouro Preto assume uma dimensão sagrada, ancorada em elementos de fé. E está ancorada também em memórias de infância, em histórias de vida. Uma das entrevistadas, por exemplo, que trabalhou durante muito tempo como lavadeira, disse que a água estudou os filhos dela. A água assume, então, aspectos de função identitária, tem uma questão cultural envolvida, e a privatização aflorou esses sentimentos. Isso explica a mobilização, explica o que gera essas reações”, explica Natália.
A questão econômica foi mencionada durante as entrevistas, uma vez que, enquanto o serviço era municipalizado, os moradores pagavam apenas uma taxa de 27 reais para a manutenção dos serviços, e, com a privatização, passaram a pagar pelo consumo. A maior parte dos entrevistados considera justa a hidrometração, ou seja, a cobrança conforme o consumo, desde que os preços não sejam abusivos. “Isso mostra que a manifestação contrária à privatização não é uma questão de pagar, e sim porque as pessoas consideram que o poder público tem mais condições de garantir preços mais justos em relação a uma empresa privada, que, segundo eles, vai sempre visar ao lucro”, afirma a pesquisadora.
O estudo também avaliou as representações sociais acerca da privatização. Observou-se que, de forma geral, as pessoas se referem à privatização como morte e ainda como um grande mal. No processo de ancoragem, a privatização é classificada como roubo e crime contra a população, além de estar associada a uma memória coletiva de colonização, de exploração pelo estrangeiro.
“As pessoas fazem referência aos tempos coloniais, dizendo que, assim como roubaram o ouro da cidade, agora, estão querendo roubar a água. Nos dois casos, tanto no período colonial, quando havia o colonizador português, como agora, existe a figura do estrangeiro, já que a empresa Saneouro, responsável pela prestação dos serviços, pertence a um grupo sul-coreano. Além disso, para os entrevistados, a água é um bem comum público, que não pode ser explorada por uma empresa particular”, destaca a pesquisadora.
Os entrevistados também disseram que, após a privatização, houve queda no padrão de qualidade da água e apontaram a presença de matéria orgânica entre as características negativas. Segundo a pesquisadora, esses apontamentos podem levar as pessoas a recorrerem a outras fontes com características estéticas mais aceitáveis, ainda que sejam sanitariamente inseguras. “Além disso, a incapacidade de pagamento da tarifa praticada e a interrupção do fornecimento de água por inadimplência, condição que atinge as famílias em situação de vulnerabilidade, podem se somar à questão da qualidade da água e fazer com que as pessoas busquem por águas de fontes sanitariamente inseguras”, destaca.
Para Natália, a pesquisa sobre as representações sociais da água e da privatização dos serviços de água e esgotamento sanitário para moradores de em Ouro Preto mostra a importância de escutar o território antes de tomar decisões políticas. A pesquisadora ressalta que privatização dos serviços no município atendeu aos trâmites legais, mas, conforme os relatos dos entrevistados, a população só entendeu o que estava acontecendo quando houve a assinatura do contrato, amplamente divulgado pela mídia jornalística local e da região. “Se a população tivesse sido ouvida de forma efetiva, será que a privatização teria acontecido? Essa escuta tem que anteceder as decisões políticas, ainda mais quando se trata de um contrato de 35 anos, como é o caso do que foi assinado com a Saneouro. Nossa pesquisa reforça a necessidade de haver uma ampla discussão com a população para embasar a tomada de decisões”, destaca.
Os resultados da pesquisa estão descritos na tese intitulada “Água é vida, privatização é morte”: direitos humanos e representações sociais diante da privatização dos serviços de água e esgotamento sanitário em Ouro Preto, Minas Gerais, que, em breve, estará disponível no repositório Arca da Fiocruz. A tese deu origem a alguns artigos já publicados (links abaixo) e outros três estão em fase de revisão. A pesquisadora também contribuiu com o documentário A Batalha da Água em Ouro Preto, uma produção coletiva que envolveu várias pessoas.
A crise na privatização dos serviços de saneamento em Ouro Preto-MG