Vencendo a Doença de Chagas: uma luta que começou em Minas

Bambui70anos

João Carlos Pinto Dias[1]

Há exatamente setenta anos, o pesquisador Emmanuel Dias, do Instituto Oswaldo Cruz, chegava à pequenina Bambuí, no Oeste de Minas, para iniciar uma das mais gloriosas páginas da Medicina Brasileira: a criação de um “Centro de Estudos e Profilaxia da Doença de Chagas”. A cidade estava então infestada pelos “barbeiros”, os insetos transmissores da doença de Chagas, e eram muitos os casos agudos da moléstia, ali identificada pelos médicos mineiros Amilcar Vianna Martins e Antônio Torres Sobrinho.

As pesquisas indicavam mais de 75% da população rural como portadora da doença e eram incontáveis as mortes prematuras em jovens trabalhadores afetados pela forma cardíaca, além de muitos casos de alterações digestivas (megaesôfago e megacolon). Com enorme capacidade de trabalho, e também inspirado por Carlos Chagas (que fora seu padrinho), Dias organizou o  trabalho, mapeou o município com pesquisas entomológicas e sorológica, preparou uma incrível equipe de auxiliares, recrutada em Bambuí e treinada em serviço por ele mesmo, montando-se um pequeno posto nua casa alugada para exame de barbeiros, testes de inseticidas, coleta de sangue e eletrocardiogramas, realização de autópsias etc. Para combater os barbeiros, com auxílio da Prefeitura e da “Fundação da Casa Popular”, foram melhoradas e construídas casas de alvenaria na zona periurbana, enquanto a população era motivada a detectar e destruir aqueles insetos. Uma choupana rural foi particularmente estudada, por albergar mais de 10.000 exemplares do Triatoma infestans,  a mais perigosa das espécies, um triste “record” mundial. Em 1947 descreveu-se em Bambui o inseticida BHC, de notável ação imediata e residual contra os barbeiros, o que deu início a trabalhos de rociamento sistematizado no município, em Mias, no Brasil e outros países.

Em paralelo, Dias e seus colegas Nóbrega e Laranja sistematizavam definitivamente o perfil clínico e anatomopatológico da cardiopatia chagásica, possibilitando desde então o seu reconhecimento mundo afora. Em 1951, mercê de grande articulação de Emmanuel e de alguns fortes aliados entre os quais o Governador Milton Campos, o Ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, seu Chefe de Gabinete Carlos Drummond de Andrade, os doutores Mario Pinotti e Maurício Medeiros (futuros ministros), foi construído o prédio definitivo do Posto, dotado de RX, laboratórios e salas de internação, até hoje existente. Falecendo Dias em 1962, em trágico acidente, o Posto continuou sob a égide de pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz, posteriormente passada sua gestão para o Centro René Rachou, de Belo Horizonte.

Inúmeros estudos e teses prosseguiram no Posto (hoje denominado Emmanuel Dias), destacando-se: a implantação de uma vigilância epidemiológica contra a doença de Chagas através de participação comunitária (pioneira no mundo), a descrição pioneira de novos inseticidas piretroides, os estudos evolutivos da doença crônica, com casos seguidos durante décadas, os estudos locais de morbidade e atenção à saúde (“Projeto Bambuí Saudável”), os estudos de biologia de espécies silvestres do vetor e  várias pesquisas no aprimoramento de métodos de diagnóstico parasitológico. Bambuí está há anos livre do Triatoma infestans, fato que se constituiu em importante argumento para deslanchar-se uma iniciativa internacional  envolvendo sete países do Cone Sul, hoje em franco progresso. Desapareceram os casos agudos e a prevalência da infecção na população geral do município reduziu-se a 7%, restrita ao grupo etário de mais de 60 anos. Por tudo isto, vale celebrar.


[1] – Médico, Pesquisador Emérito da Fiocruz (Centro de Pesquisas René Rachou, de Belo Horizonte). Membro do Comitê de Doenças Negligenciadas da Organização Mundial da Saúde e da Academia Mineira de Medicina.  E-mail: jcpdias@cpqrr.fiocruz.br